
Causalidade: Da Filosofia a Medicina Parte 1
A causalidade é um dos temas que mais geram debates na Filosofia, existindo correntes que propõem abordagens completamente distintas sobre como é possível descobrir a causa de um fenômeno. No entanto, a abordagem dos acontecimentos por uma perspectiva de causalidade precede a origem da Filosofia, existindo registros em mitos e histórias de tempos imemoriais. Nessa série de dois textos falaremos da causalidade sob um ponto de vista da Filosofia e da Medicina.
Mitologia, Religião e Pensamento Mágico
A busca por explicações sobre os fenômenos da natureza é uma condição inerente ao homem, presente em diversas culturas em diferentes períodos da história da humanidade. A mitologia, por exemplo, foi durante muito tempo dominante enquanto modelo lógico utilizado para explicar as leis da natureza e o funcionamento do universo. Os mitos, especialmente os gregos, buscavam construir narrativas que se apoiavam na essência humana ou divina para fornecer explicações lógicas para dúvidas e incertezas da humanidade (GRIMAL, 2013).
Na mitologia grega, por exemplo, a explicação para a existência de diferentes estações do ano residiu no rapto de Perséfone por Hades. Demetra, deusa da colheita e mãe de Pérsefone, enfurecida com o sequestro da filha, castiga o mundo, destruindo as plantações e, dessa forma, trazendo caos e fome. Zeus, na tentativa de conciliar os desejos de seu irmão, Hades, e da sua esposa, Demetra, faz o seguinte acordo: Perséfone passaria metade do ano com o marido e a outra metade com a mãe. Demetra aceitou a proposta de Zeus e, assim, surge a explicação dos gregos para as estações do ano. Quando era verão e primavera, Perséfone ficava ao lado de sua mãe. No inverno e no outono, épocas frias, sem colheitas, Perséfone estava com o marido.
Figura 1: Proserpine (Persérfone), 1882. Artist: Dante Gabriel Rossetti
#ParaCegoVer: Há uma mulher de cabelos cacheados segurando um fruto com a mão esquerda enquanto a mão direita segura a mão esquerda. Ela veste um vestido verde
Fonte: owlcation
Nas religiões, a verdade sobre o mundo e sobre a causalidade dos fenômenos existentes nele também estão associadas a entidades divinas, seus interesses e os conflitos decorrentes de sua interação com a humanidade. Tanto as explicações religiosas, quanto as baseadas em mitos, ainda que sejam providas de algum nível de raciocínio lógico, tem como base premissas pautadas no pensamento mágico.
O pensamento mágico é um termo utilizado na Ciência cognitiva para descrever teorias que buscam explicar a causalidade de fenômenos com bases em associações, correlações cujas comprovações como verdadeiras se sustentam na crença no sobrenatural, na tradição de um povo ou em saltos lógicos (OGDEN, 2012; WIKIPEDIA, 2007). A adoção de tal pensamento traz uma série de limitações na busca pela compreensão da natureza, uma vez que são propostas correlações e associações para explicar fenômenos cuja possibilidade de falseá-las, isto é, colocá-las à prova, não existe.
Possuir crenças e considerá-las a priori verdadeiras não necessariamente constitui algo ruim, uma vez que a busca pela verdade acerca da natureza não é uma questão que deva mobilizar a todos, de tal forma que deve ser permissível nos apoiarmos em crenças sustentadas pela fé . Mas se quisermos uma compreensão do mundo livre das limitações trazidas pelo pensamento mágico, é preciso que nossas ideias sejam menos dependentes de nossas crenças a priori e possam ser submetidas tanto a uma intensa autoavaliação, mas também análises críticas realizadas por terceiros.
A causalidade um desafio para a Filosofia
Com o surgimento da Filosofia, as explicações sobre os fenômenos da natureza tentaram se dissociar de ideias mágicas, passando a ter na racionalidade o apoio para interpretar e buscar a verdade sobre a natureza. No âmbito da Filosofia, a noção de causalidade foi primeiramente apresentada pelo filósofo grego Platão, ao explicar a figura do “Demiurgo” como o responsável pela natureza do mundo físico (Timeu, 68e).
Discípulo de Platão, Aristóteles avançou na discussão iniciada pelo seu mestre categorizando a causalidade em quatro tipos: a causa material, a causa eficiente, a causa formal e a causa final. Dessas, existia um contraponto claro entre a causa eficiente (por que) e a causa final (para que), e Aristóteles concebia que a causa final deveria ditar a investigação sobre os fenômenos da natureza, de tal forma que o problema filosófico se concentraria em entender para que um fenômeno acontece e não o porquê. Exemplo disso, seriam as diferentes abordagens possíveis ao explorar a causalidade de um mesmo fenômeno: a movimentação de um corpo. A questão principal para Aristóteles, conforme bem pontuado por Ponczek (2003, p. 64), era saber para que um corpo se move e não o porquê.
A causa final, como norteadora do pensar filosófico, foi influente por vários séculos, mas, à medida que a Ciência passou a ameaçar a hegemonia do pensamento filosófico como a melhor forma até então desenvolvida para chegar à verdade, a cosmovisão mudou de figura, passando a ter a causa eficiente (por que) como definidora da direção para qual a investigação sobre a natureza deveria caminhar (PONCZEK, 2003).
Figura 2: Aristóteles

#ParaCegoVer: Há uma estátua de Aristóteles
Fonte: todamatéria
Nesse sentido, Isaac Newton foi uma figura revolucionária para essa mudança, visto que, com a mecânica newtoniana, as causas formal e final deixaram de ditar o foco da investigação sobre a natureza, e com isso causalidade passou a ser pensada, principalmente, a partir de dois direcionamentos: a causa material e, especialmente, a causa eficiente (PONCZEK, 2003).
“A evolução de um objeto no espaço-tempo poderia ser prevista a partir da sua matéria constituinte (causa material) e das ações que este objeto sofre dos demais (causa eficiente)” (PONCZEK, 2003, p. 66).
Gif 1: Isaac Newton
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Fonte: GIPHY
Causalidade um abordagem de Karl Popper
Visando trazer a discussão sobre a causalidade para uma abordagem filosófica mais contemporânea, tratarei agora da contribuição de Karl Popper neste tópico. Vale pontuar que a obra de Karl Popper já foi anteriormente comentada aqui no blog no texto Karl Popper e a lógica da pesquisa científica.
É muito comum observarmos no cotidiano relações entre fenômenos equivocadamente entendidas como de causalidade. Esse equívoco pode ser explicado, em parte, pelo viés cognitivo que muitas pessoas adotam quando propõem estabelecer relações entre fenômenos, especialmente as relações de causalidade.
No entanto, equívocos ao tentar presumir causalidade de um acontecimento não são exclusividade de pessoas leigas; longe disso, bons pesquisadores dotados de vastos conhecimentos de metodologia de pesquisa podem cometer esses enganos. Mas por quê? Porque deduzir um enunciado como causal é um processo complexo, exigindo um forte racional teórico que sustente as conclusões obtidas a partir da experimentação, ou seja, muito mais do que aplicar o passo a passo da melhor metodologia disponível.
Além disso, o pensamento científico, em sua simbiose com a Filosofia, costuma adotar critérios teóricos que guiam a aplicação do método científico. No entanto, existe um volume considerável de teorias filosóficas que se propõem a refletir sobre causalidade. Essas teorias, em algum momento, se chocam, trazendo percepções diferentes sobre o papel da causalidade na Ciência e os caminhos necessários para inferi-la (WOODWARD, 2016). Isso não significa necessariamente algo ruim, mas reforça a posição ativa do cientista no reconhecimento das limitações do método científico, bem como a necessidade de reflexão e intensa racionalidade envolvidos no ato de pensar Ciência.
#ParaCegoVer: Há uma mulher de cabelos cacheados vestindo uma camisa branca e uma calça jeans. Ela está sentada, olhando para o lado direito e fazendo anotações em um caderno azul
Fonte: unplash
Popper entende a causalidade como uma regra metodológica a ser adotada sempre que possível durante a investigação científica. Nesse sentido, ele destaca que, embora não acredite na causalidade como única abordagem possível, somente através dela é possível buscar leis universais (POPPER, 1974).
De modo a colocar o seu dedo nesse “vespeiro” que é o debate sobre causalidade, Popper propõe como primeiro passo para a explicação causal de um fenômeno a construção teórica da hipótese. Para isso, é necessário combinar:
- Enunciados gerais que garantam a explicação causal proposta um caráter de lei universal, portanto passível de replicação e testagem;
com
- Enunciados singulares que caracterizam o evento cuja explicação causal queremos avaliar.
Sendo assim, é possível, por exemplo, afirmar que a explicação causal para o rompimento de um fio (exemplo original dado por Popper), na medida em que o fio que estamos avaliando tem uma resistência à ruptura igual a 5 kg, se deve ao peso de 10 kg que foi preso nele. Logo, a nossa hipótese, presumindo que os princípios da mecânica newtoniana não foram difundidos a ponto de tornar óbvia essa constatação, é que:
Hipótese: sempre que um fio é levado a suportar um peso que excede aquele que caracteriza a sua resistência à ruptura, ele se rompe. A causa do rompimento do fio que estou avaliando é o peso de 10 kg que supera a sua resistência a pesos com até 5 kg.
Percebam que essa hipótese possui tanto um enunciado geral que confere a ela a possibilidade de ser refutada, assim como a avaliação deste fenômeno de rompimento com fios de características distintas, com mais ou menos resistência associado a pesos maiores e menores que 10 kg. Na hipótese também encontramos os enunciados singulares que descrevem o evento específico de que estamos tentando deduzir a causa:
Eventos singulares: 1. “A resistência característica deste fio é de pesos até 5 kg” e 2. “o peso preso a este fio é de 10 kg”.
Os eventos singulares, que Popper também chama de condições iniciais, descrevem o que geralmente é chamado de “causa” de um evento em questão. No exemplo acima, o rompimento do fio tem como causa a ação de prender um peso de 10 kg num fio cuja resistência à ruptura é igual a 5 kg.
Considerações finais
Certamente, o leitor deve estar se questionando sobre a promessa contida no título do texto de abordarmos a causalidade sob um ponto de vista da Filosofia e da Medicina. Não se preocupem, esta é a parte 1 do nosso artigo e, agora que estabelecemos um ponto de partida, podemos falar sobre critérios de causalidade na Medicina.
Antecipo que inferir causalidade na Medicina é mais complexo que explicar a causa do rompimento de um fio. Em breve continuaremos a nossa discussão abordando critérios teóricos que auxiliam a inferir causalidade na Medicina.
“A Ciência vista como uma vela na escuridão”
Gif2: “A jornada de cada um de nós começa aqui”
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Fonte: GIPHY
Referências
CONTRIBUIDORES DOS PROJETOS DA WIKIMEDIA. Pensamento mágico. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Pensamento_m%C3%A1gico#:~:text=Em%20antropologia%2C%20psicologia%20e%20ci%C3%AAncia>. Acesso em: 18 maio 2021;
CONTRIBUIDORES DOS PROJETOS DA WIKIMEDIA. Timeu (diálogo). Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Timeu_(di%C3%A1logo)>. Acesso em: 2 mar. 2021;
GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. 2. ed. Trad. por V. Jabouille.Lisboa; Rio de Janeiro: Difel; Bertrand Brasil, 1993
OGDEN, Thomas. Sobre três formas de pensar: o pensamento mágico, o pensamento onírico e o pensamento transformativo. Revista Brasileira de Psicanálise · v. 46, n. 2 , 2012. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbp/v46n2/v46n2a16.pdf>. Acesso em: 18 maio 2021.
PONCZEK, R. L. A idéia de causalidade na Física Clássica. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, [s. l.], v. 20, n. 1, p. 63–85, 2003. Available at: https://doi.org/10.5007/9781
POPPER, Karl R. – A Lógica da Pesquisa Científica. Tradução de Leônidas Hegenberg & Octanny Silveira da Mota. São Paulo, Cultrix, 1974.
WOODWARD, J. Oxford Handbooks Online Causation in Science. [s. l.], n. January 2018, p. 1–23, 2016. Available at: https://doi.org/10.1093/oxfordhb/9780199368815.013.8
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