
Por que ser cientificista?
O mito de Cassandra
A jovem Cassandra é uma personagem da mitologia grega que aprendeu com o deus Apolo a prever o futuro. Quando negou ter relações sexuais com ele, no entanto, ganhou do deus chernoboy a maldição de ser considerada louca, para que jamais acreditassem em suas previsões. Em vão, tentou alertar sua família e sua cidade sobre os perigos de um tal cavalo de madeira, o famoso presente de grego – mas ninguém acreditou em Cassandra [1].
Pouco depois, em 2017, a microbiologista Natália Pasternak realizou a palestra “A ciência brasileira e Síndrome de Cassandra” no TEDxUSP. Nela, em analogia ao mito grego, discute a falta de credibilidade do cientista brasileiro para a população em geral, traçando um arco do silêncio dele sobre assuntos diversos no debate público: xampus com DNA vegetal, sucos detox, pseudociências no SUS, fosfoetanolamina como “cura do câncer”, movimento anti-vacina... “Nós não falamos quando era necessário”, diz ela, “e aí não sobrou ninguém para falar por nós” [2].
Imagem 01 – Natália Pasternak

Fonte:https://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2021/01/para-natalia-pasternak-ciencia-vai-muito-alem-da-vacina-chamada-para-realidade.html
Pasternak, então, resolveu falar por nós. Em 2018, fundou o Instituto Questão de Ciência, do qual é presidente, e a revista homônima para comunicação científica [3]. Recentemente, através do editorial “Pseudociência não tem lugar no ensino à saúde”, tive conhecimento da proposta para criação da disciplina obrigatória “Perspectiva Quântica para o Cuidado de Enfermagem/Saúde” na Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande (FURG- RS), no lugar da existente disciplina de Terapias Integrativas [4]. A ata da reunião em que foi feita a proposta traz a sua ementa e, ainda, uma optativa:
“[...] sob a seguinte ementa: ‘Contribuições da Teoria Quântica para o cuidado de Enfermagem/Saúde (energia, vibração, espiritualidade, fé, crenças, pensamentos, sentimentos e emoções). [...] Noções básicas sobre Ayurveda, Fitoterapia e Fitoenergética, Florais de Bach e Saint Germain, Mandalas, Medicina Tradicional Chinesa, Meditação e Yoga.’ Além desta, também foi proposta a criação da disciplina Terapias de Toque Vibracional no contexto socioambiental, com caráter optativo [...]” [5]
A quântica foi tanta que, após o editorial, os docentes de Física da FURG escreveram um manifesto contra a criação da disciplina, alertando que, pasmem, “não têm suporte científico de correlação ou vínculo com a Teoria Quântica, e em qualquer contexto conhecido é suportado por esta [6].” Reforçam, por fim, que o grupo mantém “os princípios da ciência como pilares na construção do conhecimento [6].”
Ora, a última citação bem que poderia ter sido retirada daqui do AcademiaFMB, o site da LAC-FMB. Em nossa filosofia, já afirmamos acreditar que o método científico é o melhor caminho em direção à verdade. Aliás, a semelhança da “Perspectiva Quântica” com pseudociências presentes em disciplinas da própria FMB-UFBA faz pensar que esse poderia ser mais um motivo por que a LAC-FMB existe. Disse Santiago Mozart, fundador da LAC-FMB: “O silêncio é uma constante, afinal. A falta de coragem de se opor ao absurdo é evidente e recorrente durante a nossa formação [7].”
Tanto para Santiago e para Beatriz Andrade, nossos fundadores, quanto para os professores de Física da FURG e para Natália Pasternak, fez-se necessário romper o silêncio e defender a ciência. É o único caminho contra o “presente de grego” das pseudociências. Em seu texto, Santiago sintetiza: "Somos um grupo político. Existimos pela necessidade urgente de defesa da Ciência, dentro do ambiente que deveria ser o mais dedicado a preservá-la [7].” Se queremos que a ciência tenha credibilidade, em face das ameaças que essa sofre, é preciso sermos cientificistas.
Imagem 02 – Mario Bunge

Fonte: https://frontdaciencia.blogspot.com/2017/09/mario-bunge-i.html
O que é o cientificismo?
Para responder a esse e aos tópicos seguintes, recorro a Mario Bunge (1919-2020) em seu texto “Em defesa do cientificismo”. O físico e filósofo argentino faz uma breve história do cientificismo e, claro, argumenta por que devemos defendê-lo.
“Por ‘cientificismo’ refiro-me à tese de que todos os problemas cognitivos são melhor resolvidos adotando uma abordagem científica, também chamada de ‘método científico’, ‘espírito da ciência’ e ‘atitude científica’ [8].”
O autor divide ainda as pessoas que escrevem sobre ciência em três grupos: cientificista, (em que coloca o marquês de Condorcet e Piaget) anticientificista (em que inclui Nietzsche, Hegel e Heidegger) e semicientificista (de Kant e de Marx). Nesse último, refere-se a pensadores que elogiaram a racionalidade e a universalidade da ciência, mas que ainda defendiam dogmas anticientíficos.
Bunge atribui a origem do termo cientificismo à ala radical do Iluminismo francês, colocando-o como um dos componentes populares à visão do grupo, assim como o secularismo, o igualitarismo, o humanismo e o materialismo. Conta que havia desacordo do tópico com a ala moderada do movimento e com o Iluminismo escocês, e destaca a atuação, principalmente, do radical Condorcet [8]:
“Enquanto os radicais franceses acima mencionados eram revolucionários, tanto filosoficamente quanto politicamente — embora do tipo poltrona — os voltairianos e os escoceses eram reformistas. Em particular, eles não compartilhavam o ateísmo nem o republicanismo dos radicais franceses. Tampouco aprovaram o manifesto científico contido no discurso de recepção de Condorcet na Academia Francesa de 1782. Condorcet declarou neste manifesto a sua confiança de que as ‘ciências morais [sociais]’ acabariam ‘por seguir os mesmos métodos e adquirir uma linguagem igualmente exata e precisa’ e ‘por atingir o mesmo grau de certeza’ das ciências físicas (naturais). Condorcet não meramente elogiou o cientificismo: ele o praticou por meio da fundação da ciência política matemática [8].”
Imagem 03 – Marquês de Condorcet

Fonte: https://universoracionalista.org/em-defesa-do-cientificismo/
Contrailuminismo e anticientificismo
Mario Bunge argumenta que o termo cientificismo foi tornado pejorativo pela propaganda religiosa, além de muito comparado ao positivismo, a despeito dessa corrente defender a comparação, e não a experimentação. Além disso, Friedrich Hayek descreveu um conceito enviesado, popular entre os pós-modernos: “o cientificismo seria ‘a tentativa de imitar as ciências naturais’ em questões sociais [8].”
No entanto, seria o influente manifesto anticientificismo de Wilhelm Dilthey (1833-1911) o primeiro grande responsável por difundir essas ideias, que bebem de Kant e Hegel [8]. Dilthey defende, basicamente, que os estudos sociais devem utilizar um método próprio, chamado Verstehen – do alemão, compreensão ou interpretação – “em oposição à explicação com base em mecanismos e em leis [8].”
“A hermenêutica ou textualismo emergiu das teses de Dilthey de que (1) tudo que é social é espiritual ou cultural e (2) de que o centro da vida social é a produção e a circulação de símbolos, que devem ser interpretados da mesma maneira que os teólogos interpretam escrituras enigmáticas [8].”
Ciência é política por outros meios?
Segundo Bunge, a visão de Robert K. Merton (1910-2003), exaltando o desinteresse, a universalidade, o comunismo epistêmico e o ceticismo organizado — a inspeção e a análise de toda a comunidade — enquanto singularidades da ciência, prevaleceu até a disseminação das ideias de Thomas Kuhn, Paul Feyerabend, Michael Foucault e seus seguidores. Dentre esses, principalmente, Bruno Latour, autor da frase “ciência é política por outros meios” [8].
No entanto, o autor aponta as contradições desse pensamento: o principal propósito da pesquisa científica é alcançar a verdade objetiva, e o que motiva o cientista é a curiosidade e o reconhecimento dos pares [8]. Por isso, inclusive, ele evita ocupar posições de poder e, em determinados momentos, até é refém da política [8].
Se, por vezes, a ciência é tratada como agente político sem compromisso com a verdade, como a adjetivação contraditória de Simões (2003), por exemplo, das teorias antropológicas racistas de Nina Rodrigues como “cientificistas”, é mais do que notório o embasamento de Rodrigues em ideias falsas, pseudocientíficas, desconsideradas pelas ciências naturais e humanas [9]. Assim, como destaca Bunge – e como é convenientemente esquecido pelos críticos ao cientificismo – as controvérsias científicas são resolvidas pela própria ciência através do escrutínio de sua comunidade, prevalecendo a verdade [8]. Como já descrito neste texto, o cientificismo presume a adoção do método científico, não simplesmente a utilização de títulos e de instituições para disseminação de uma ideia [8].
O cientificismo é reducionista?
Como já dito anteriormente, Hayek (1899-1992) popularizou o conceito enviesado de cientificismo enquanto “tentativa de imitar as ciências naturais em questões sociais” [8]. Mario Bunge, então, contesta essa hipótese, afirmando que a dicotomia entre o natural e o cultural sempre foi falha. Ele exemplifica com a relação, por exemplo, de a puberdade causar sentimentos alterados, que, por sua vez, causam comportamentos sociais alterados, exigindo a fusão de três ciências distintas para a sua compreensão: neurociência (biológica), neurociência cognitiva (biossocial) e sociologia (social) [8].
Por que escolher a ciência?
Para além de qualquer mito grego e de qualquer marquês iluminista, em conclusão, o método científico funciona melhor que o método Verstehen e que outros métodos anticientificistas – baseados em “tradição, intuição, tentativa e erro e contemplação do próprio umbigo”, segundo Bunge. Ele afirma que “o mundo é o sistema de todos os sistemas materiais”, e, portanto, a pesquisa científica é o método que melhor se adequa ao mundo e à cognição [8].
Utilizar apenas nossos sentidos, que produzem nada mais do que aparências, seria limitante; a partir da nossa imaginação, somos capazes de utilizar a observação, a experimentação, a computação e a consiliência, isto é, uma base comum de conhecimento de diferentes disciplinas [8]. A ciência, segundo Mario Bunge, é exponenciada por um mecanismo de feedback (retroalimentação) positivo, em que cada produção é também combustível para o sistema.
Disso Newton já sabia! – dizemos Belchior e eu – afinal, como a metáfora popularizada pelo físico inglês, “se eu vi mais longe, foi por estar sobre ombros de gigantes” [10]. A verdade científica é construída em conjunto e a sua defesa, também. Nós precisamos, além de coragem para romper o silêncio, da ajuda de Bunge, de Pasternak, de Condorcet, de Merton, de Santiago, de Beatriz e – por que não? – da sua!
Referências Bibliográficas
[1] Wikipedia. Cassandra [acesso em 22/05/2021]. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Cassandra
[2] Pasternak, Natália. A ciência brasileira e síndrome de Cassandra [acesso em 22/05/2021]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=F3kUeDlP3Io
[3] Instituto Questão de Ciência. Quem Somos [acesso em 22/05/2021]. Disponível em: https://iqc.org.br/quem-somos/iqc/
[4] Revista Questão de Ciência. Pseudociência não tem lugar no ensino à saúde [acesso em 22/05/2021]. Disponível em: https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/editorial/2021/04/24/pseudociencia-nao-tem-lugar-no-ensino-de-saude
[5] EENF-FURG. Reunião Ordinária do Conselho da Escola de Enfermagem, ata 11/2019 [acesso em 22/05/2021]. Disponível em: https://eenf.furg.br/images/atas/2019/Ata_11-2019__Reunio_Ordinria_041019.pdf
[6] Orsi, C. Manifesto de professores de Física condena pseudociência "quântica" na FURG. [acesso em 22/05/2021]. Disponível em: https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/artigo/2021/04/27/manifesto-de-professores-de-fisica-condena-pseudociencia-quantica-na-furg
[7] Mozart, S. É por isso que a LAC-FMB existe. 2020. [acesso em 22/05/2021]. Disponível em: https://academiafmb.com.br/2020/08/30/e-por-isso-que-a-lac-fmb-existe/
[8] Bunge, M. In Defense of Scientism. Free Inquiry, 2014, v.35(1). [acesso em 22/05/2021]. Disponível em: http://www.rosenfels.org/Bunge_-_In_Defense_of_Scientism_(Council_for_Secular_Humanism,_2014).pdf . Tradução disponível em: https://universoracionalista.org/em-defesa-do-cientificismo/
[9] Simões, RL. Mistura mórbida: discurso cientificista e estereótipo nas obras de Raymundo Nina Rodrigues e Roque Callage. MÉTIS: história & cultura, 2003, v. 2(4), p. 155-166.
[10] Wikipedia. Sobre os ombros de gigantes [acesso em 22/05/2021]. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Sobre_os_ombros_de_gigantes
0 Comentários