Manual básico para (tentar) não se confundir

O ano era 2007 e a empresa aérea “Nepal Airlines” sacrificou dois bodes antes da partida do seu Boeing 757 saindo da capital nepalesa Katmandu rumo a Hong Kong. O motivo? O avião estava com problemas de confiabilidade e o sacrifício dos animais seria para proteger o voo que se sucederia. Depois da conclusão satisfatória da viagem, podemos dizer que o sucesso se deu pela morte dos bodes?

Em estudos epidemiológicos, está bem estabelecido a possível ocorrência de vieses, caracterizados “como qualquer erro sistemático em um estudo epidemiológico que resulta em uma estimativa incorreta do verdadeiro efeito de uma exposição no desfecho de interesse”. [1] Esse tema já foi alvo de publicação recente no blog da LAC-FMB e minha intenção com esse texto é dissertar mais especificamente sobre o viés de confusão, não necessariamente em pesquisas científicas, mas com uma abordagem mais casual.

Sendo assim, qual uma possível definição para um viés de confusão? Seria, basicamente, “Uma distorção que modifica uma associação entre uma exposição e um desfecho porque um fator é associado, de modo independente, tanto à exposição quanto ao desfecho”. [2] Então, será possível associar, sem erro, que o sucesso do voo da empresa nepalesa se deu pelo sacrifício dos bodes, ou há alguma outra exposição que pode estar mais associada ao desfecho positivo? É o que vamos tentar descobrir e, mais a frente, tentar se esquivar desse possível equívoco.

Segurança operacional na aviação

De acordo com a ANAC, agência reguladora brasileira responsável pela segurança e excelência da aviação civil nacional, a segurança operacional é caracterizada pelo “Estado no qual o risco de lesões a pessoas ou danos a bens se reduzem e se mantêm em um nível aceitável ou abaixo deste, por meio de um processo contínuo de identificação de perigos e gerenciamento de riscos”. [3]

De fato, os baixíssimos índices de acidentes alcançados pela aviação comercial atualmente se devem por uma cadeia de fatores, entre eles, a qualidade das aeronaves, o treinamento correto dos pilotos, comissários e mecânicos, a boa estrutura oferecida pelos aeroportos e a trafegabilidade pelos ares. Inclusive, segurança na aviação é um tema que já foi abordado no blog da LAC-FMB. Então, voltando ao satisfatório voo da Nepal Airlines até Hong Kong, constata-se que há uma série de exposições que podem influenciar na segurança do voo, indícios de um possível viés de confusão. Mas como eles se entrelaçam com a empresa em questão?

Bem, a Nepal Airlines foi classificada em 2019 pela Airlines Ratings, site de classificação mundial em segurança na aviação, como uma das companhias aéreas mais inseguras do mundo. Apesar da IATA, sigla em inglês para “Associação Internacional de Transporte Aéreo”, criticar esse ranking, ele serve de termômetro para questionarmos toda a cadeia de segurança, dita anteriormente, acerca da empresa. Além do mais, a companhia, de acordo com a Lista de segurança aérea da União Europeia, se encontra proibida de voar para os países do bloco. Essa decisão se baseia em alguns critérios em que os europeus analisam as cadeias de segurança da empresa, como treinamento de pilotos, conservação das aeronaves, além do quão eficientes são as agências locais de fiscalização da segurança operacional.

Claro que não é possível atrelar a má gerência operacional da empresa com um acidente em cada voo, mas também não se deve, simplesmente, associar o sacrifício dos bodes com um voo sem intercorrências. Fazendo uma analogia entre a segurança operacional da aviação com uma matéria escolar, imagine que a nota da Nepal Airlines na matéria seja 9,8 e a média de outras empresas seja 9,9 ou 10. Em uma situação típica, 9,8 seria uma ótima nota, mas a aviação comercial é tão exigente no quesito segurança que o índice se torna inadmissível.

Figura 1: Mecânico fazendo manutenção em um motor de avião

Mecânico fazendo manutenção em um motor de avião.jpg

Fonte: Flickr

Tentando não se confundir

Em estudos controlados, como em ensaios clínicos experimentais, há alguns artifícios utilizados para tentar reduzir o viés de confusão, dentre os quais a randomização, que consiste em adequar aleatoriamente a população de estudo a fim de que as variáveis confundidoras sejam igualmente distribuídas entre os grupos. Outra opção é restringir alguns participantes que tenham alguma característica que possa enviesar o estudo, por exemplo, algum efeito de confusão associado ao tabagismo será eliminado nos resultados se fumantes forem excluídos dos testes. [4] Entretanto, essas medidas são difíceis de estarem presentes em observações feitas no dia a dia. Então, como proceder?

Bem, há alguns esforços cognitivos que podem nos ajudar nessa questão, vamos vê-los e compará-los ao voo da Nepal Airlines. 

1) A probabilidade da associação é alta? À luz da razão, não é muito sugestivo dizer que o sacrifício de animais tenha alta probabilidade de impedir um acidente aéreo, por exemplo. 

2) A força de associação é consistente? Pelos diversos fatores comentados por trás da segurança que uma empresa aérea pode oferecer, podemos inferir que é difícil associar a não ocorrência de um acidente a um único fator, no caso, os referidos bodes. 

3) É antiético algum estudo experimental? Seria antiético sujeitar pessoas ao risco de ter que estar num avião que poderia se acidentar, mesmo sendo, no mundo ideal, uma dos mecanismos para diminuir o viés de confundimento. [5] 

Com isso, constata-se que, mesmo o terceiro ponto sendo pertinente para o caso em questão, não é possível inferir uma força de associação considerável entre o sacrifício dos animais e a proteção do voo. O que fica, como em muitas situações diárias, é a incerteza nas observações feitas, principalmente em relação a suas causas. 

PS: A motivação por trás da ação da empresa nepalesa em sacrificar os animais se deu pela crença no deus hindu da proteção dos céus, Akash Bhairab. Não há, em nenhuma hipótese, críticas ou  questionamentos acerca da religião Hindu. 

 

Referências:

BARRAT, Helen.; KIRWAN, Maria.; SHANTIKUMAR, Saran. Biases and Confounding. Disponível em: https://www.healthknowledge.org.uk/public-health-textbook/research-methods/1a-epidemiology/biases. Acesso em: 21/05/2021.

Catalogue of bias collaboration, Aronson JK, Bankhead C, Nunan D. Confounding. In Catalogue of Biases. 2018. Disponíevel em: http://www.catalogueofbiases.org/biases/confoundingAcesso em: 21/05/2021

ANACpédia. Disponível em: https://www2.anac.gov.br/anacpedia/index.html. Acesso em 21/05/2021.

Van Stralen K, J, Dekker F, W, Zoccali C, Jager K, J: Confounding. Nephron Clin Pract 2010;116:c143-c147. 

CORREIA, Luis Cláudio. Estudos Observacionais: quando confiar, desconfiar ou descartar? Disponível em: https://medicinabaseadaemevidencias.blogspot.com/2018/11/estudos-observacionais-quando-confiar.html. Acesso em: 20/05/2021.

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