Os Desfechos Éticos na Pesquisa Clínica: Danos e Dilemas
Não compreender corretamente a bioética e seu caráter filosófico pode levar a sérias consequências na área da pesquisa clínica. Se, outrora, a história foi marcada pelo descaso e desrespeito para com a pessoa humana, hoje, um dos problemas está associado à escolha inadequada de desenhos de estudo devido a um senso ético ilusório.
No que se refere a não compreensão do que é a ética médica e de qual é a sua importância na condução de pesquisas clínicas, dois possíveis desfechos podem ser observados: o primeiro, mais óbvio, é a exposição dos participantes a situações danosas. E o segundo, menos habitualmente percebido, é a tomada errada de decisões devido a um falso senso ético.
Para melhor explicar o primeiro dos desfechos, parece relevante utilizar exemplos da história da pesquisa clínica. Em 1966, Henry Beecher, um médico anestesista, publicou o que seria o mais assombroso dos artigos desde a divulgação das barbaridades cometidas pelos médicos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Em seu artigo, Beecher reuniu 22 relatos de pesquisas, publicadas em jornais internacionais, nas quais seres humanos foram condicionados a situações nada respeitosas. No item 1, por exemplo, o experimento consistia em interromper o uso de penicilina — cujos benefícios já eram comprovados — e administrar placebo para 109 operários com estreptococos. O objetivo era avaliar meios alternativos de prevenir complicações, sem que os participantes soubessem que estavam sendo submetidos a um experimento. A consequência foi que, dentre aqueles homens, 25 desenvolveram febre reumática. Já no exemplo 17, células cancerosas foram introduzidas em 22 pacientes hospitalizados, a fim de se estudar a imunidade ao câncer. No entanto, os participantes não foram devidamente informados sobre a natureza do experimento. Eles foram informados apenas que receberiam “algumas células”, enquanto qualquer menção ao câncer foi deliberadamente omitida.
À época, o debate ético nas pesquisas ainda não havia adquirido a relevância que tem atualmente, devido à crença utilitarista de que os possíveis benefícios a toda a sociedade seriam muito maiores do que os danos a alguns indivíduos. Hoje, contudo, com a consolidação acadêmica da bioética, o amparo dos princípios éticos na saúde — beneficência, não maleficência, justiça e autonomia — e a existência dos códigos, conselhos e comitês, casos como as atrocidades denunciadas por Beecher na década de 60 parecem ter diminuído consideravelmente.
Isso não significa que os debates no campo da bioética tenham cessado. Ainda hoje, temas como medicina reprodutiva, células-tronco e clonagem, por exemplo, rendem grandes discussões. Todavia, posto que tais temáticas já estão sendo exaustivamente trabalhadas por outros grupos, nos propomos, neste presente texto, a dar seguimento à discussão acerca da ética em pesquisa por outra via: às vezes, a falta de esclarecimento acerca da bioética faz com que as escolhas feitas sejam danosas às pesquisas clínicas, devido a um pensamento equivocado de estar optando por uma decisão mais ética.
Antes de nos aprofundarmos nesse segundo desfecho, é preciso, ainda, ressaltar que ele ocorre sobretudo porque, em se tratando de ética, as coisas não funcionam de um modo tão objetivo. Apesar da existência dos códigos, conselhos e comitês já citados, para decidir se uma medida é ou não ética, não basta apenas fazer um checklist ou aplicar um processo objetivo de análise do cumprimento das normas. Especialmente no contexto médico, é necessário entender que o tema pode adquirir um caráter filosófico e subjetivo.
Entre as muitas áreas da pesquisa clínica que podem ser influenciadas por esse debate filosófico, por ora, estaremos atados à randomização. A randomização pode ser definida como alocação aleatória de pacientes nos diferentes braços de um estudo. Neste texto, não serão explicados os diversos tipos existentes. Basta saber que ela serve para equilibrar os possíveis confundidores (fatores que podem interferir no resultado da análise).
Imagine, por exemplo, que, em um grupo de 50 pessoas que serão utilizadas como amostra para um estudo sobre a eficácia de um novo fármaco para tratamento de doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), 20 são fumantes. Posto que o tabagismo é um importante fator prognóstico para DPOC, uma alocação aleatória aumenta a chance de que cada grupo do estudo receba uma quantidade semelhante de fumantes, reduzindo a chance de viés em comparação com a hipótese de se colocarem, arbitrariamente, a maioria deles juntos em um único grupo.
Figura 01:
#PraCegoVer: Na imagem, há quatro grupos de bonecos. Os dois primeiros estão sob a legenda “randomização distribui confundidor igualmente”, e os grupos 1 e 2 possuem três bonecos cinza, dois laranjas e cinco pretos cada. Os dois últimos grupos (também chamados grupo 1 e grupo 2) estão sob a legenda “confundidor gera diferenças nos grupos na não randomização”. O grupo 1 possui quatro bonecos laranja, dois cinzas e quatro pretos, e o grupo 2 possui quatro bonecos cinza e seis pretos.
No entanto, nem sempre é possível realizar ensaios clínicos randomizados. Caso haja o interesse em avaliar a influência do etilismo na ocorrência de doenças cardíacas, por exemplo, não parece viável aleatorizar e restringir o consumo alcoólico de certos indivíduos, muito menos forçar o consumo para outras pessoas. Em situações como essa, outros modelos de estudo devem ser pensados.
Contudo, às vezes, a randomização pode até ser viável, mas opta-se por não realizá-la devido ao receio de não ser o mais ético a ser feito. Como já dissemos acima, a ética possui fundamentos filosóficos não tão objetivos. Alguns indivíduos, devido a isso, acabam tendo um entendimento equivocado acerca do princípio da autonomia, que enfatiza a importância da liberdade de escolha e da capacidade dos indivíduos de tomar decisões sobre sua saúde e bem-estar, levando em consideração seus próprios valores e desejos. Para essas pessoas, uma vez que não há evidência de que um tratamento é superior ao outro, seria antiético realizar a randomização, pois o paciente estaria tendo restringida sua liberdade de escolha. A fim de mitigar a teórica falta de ética, muitos optam pela não randomização, utilizando modelos de estudo nos quais médico e paciente podem deliberar e escolher [ou não] a intervenção.
Entretanto, os ensaios clínicos não randomizados podem apresentar uma série de vieses, como o viés da confusão, no qual confundidores não medidos podem levar a correlações não verdadeiras entre a intervenção ou o desfecho; ou como o viés da seleção, que promove desequilíbrio entre os braços do estudo devido a uma tendência de determinados grupos optarem por intervenções distintas. Esses vieses comprometem a capacidade do estudo comparar os grupos e aplicar os resultados encontrados na população real.
Mas por que dizemos que escolher esses estudos não é, necessariamente, a alternativa mais correta, quando é possível realizar randomização? A resposta está contida na Medicina Baseada em Evidências: uma vez que não há evidência que diga que um tratamento é melhor, pior ou equivalente ao outro, há uma incerteza se uma intervenção será benéfica ou danosa. Essa incerteza recebe o nome de “equipolência”, e é o que justifica dizer que não é possível, ainda, fazer uma escolha baseada em evidências, justificando uma alocação aleatória.
O que é importante ter em mente, no momento de se pensar em um desenho de pesquisa, é que um estudo só será verdadeiramente ético se for capaz de conceder à sociedade uma resposta que se aproxime da verdade (livre de conflito de interesses ou vieses) e, ao mesmo tempo, não cause danos intencionais aos seus participantes. Essa é, no fim das contas, a melhor maneira de se interpretar a ética, o que não apenas rejeita o argumento citado para a não randomização — visto que randomizar faz com que o resultado encontrado seja mais fidedigno —, como também fornece respaldo para que se tomem sempre as decisões mais adequadas para que a verdade seja alcançada.
Referências:
BEECHER H.K. Ethics and clinical research. The New England Journal of Medicine, 1966, n. 274, p. 1354–1360.
DINIZ, Debora; GUILHEM, Dirce. O Que é Bioética. Brasiliense, 2017.
HULLEY, Stephen. et al. Delineando a Pesquisa Clínica. 4.ed. Porto Alegre: Artmed, 2015.
FREGNI, Felipe; ILLIGENS, Ben M.W. Critical Thinking in Clinical Research: Applied Theory and Practice Using Case Studies, 1.ed. New York: Oxford Academic, 2018.
LIMA-COSTA, Maria Fernanda; BARRETO, Sandhi Maria. Tipos de estudos epidemiológicos: conceitos básicos e aplicações na área do envelhecimento. Epidemiol. Serv. Saúde, Brasília , v. 12, n. 4, p. 189-201, dez. 2003 .
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