As Cassandras da Ciência

O que parece apenas uma história da mitologia grega, se aproxima da história de milhares de mulheres na ciência. Entre relatos perdidos e silenciados, vem à tona narrativas das cientistas que tiveram suas descobertas descredibilizadas, tal qual a profetisa Cassandra.

 

Na mitologia grega, Cassandra, jovem profetisa e de beleza exuberante, era capaz de encantar qualquer um que a conhecesse, a tal ponto que o próprio Deus Apolo se apaixonou por ela. No entanto, Cassandra era resistente às investidas de Apolo que, contrariado, decidiu lançar-lhe uma maldição. A partir de então, apesar de seu dom de profetizar, ninguém jamais acreditaria nela novamente - sendo taxada de louca quando tentava alertar à população sobre as guerras que iriam atingir o reino de Troia. 

Talvez você nunca tenha ouvido falar de Cassandra, mas, ainda assim, consegue notar de que forma sua história se assemelha à de muitas outras mulheres. Hoje em dia, se denomina “Síndrome de Cassandra” quando a falta de credibilidade é capaz de tornar nula uma afirmativa, até mesmo quando factível. Traçando um paralelo, na história da ciência, milhares de “Cassandras” foram silenciadas e, até mesmo, tiveram suas ideias roubadas, como mais uma das sequelas da sociedade patriarcal. 

Os casos de discriminação de gênero na ciência são numerosos demais para serem calculados, mas, a fim de ilustração, irei trazer algumas histórias para vocês. 

 

Lise Meitner (1878 - 1968) 

Lise Meitner foi uma física austríaca que percebeu, em 1938, ao realizar experimentos com urânio, ao lado de seu colega químico Otto Hahn, o potencial energético por trás da fissão nuclear de átomos. As consequências da descoberta da energia nuclear deixaram grandes heranças para a sociedade, no entanto, em 1944,  quem recebeu o Prêmio Nobel de Química pelo achado foi seu colega Otto. Sem o reconhecimento oficial da academia, Lise teve de se contentar com ser citada por Otto em seu discurso de aceitação da premiação. Anos mais tarde, após seu falecimento, a comunidade científica homenageou a física dando seu nome ao elemento 109 na tabela periódica: o meitnério. 

 

Rosalind Franklin (1920 - 1958) 

No caso de Rosalind, existe um fato importante a ser mencionado: um Prêmio Nobel não é concedido postumamente. Então, apesar dela ter elucidado a estrutura do DNA, em 1951, por meio de técnicas em raio-x que originaram a “Fotografia 51”, foi somente quatro anos após seu falecimento que Maurice Wilkins, James Watson e Francis Crick - sim, os famosos Watson e Crick - receberem o Prêmio Nobel em Medicina pela descoberta da dupla hélice.  Devido a sua morte, é impossível julgar se a academia sueca teria reconhecido oficialmente suas descobertas, mas nenhum dos três homens sequer mencionou seu nome em seus discursos de aceitação. 

Vale dizer ainda que, em 1968, 4 anos após receber o Nobel, Watson buscou reconhecer as contribuições de Franklin para a descoberta em sua autobiografia “The Double Helix”. Entretanto, o reconhecimento veio carregado de comentários negativos a seu respeito - que até hoje não têm sua origem esclarecida… Estariam suas palavras carregadas de sexismo, antissemitismo (Franklin era judia), uma rinha pessoal entre eles ou apenas fruto de uma competição infeliz?

 

Figura 01:

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Fonte: https://warren.com.br/magazine/rosalind-franklin-descoberta-estrutura-dna/

#ParaCegoVer: “Fotografia 51” - primeiro registro realizado da dupla hélice do DNA - em preto e branco, colada sobre um papel amarelado com marcas de dobradura. Ao lado da foto é possível ver anotações feitas em tinta preta e, abaixo, a lápis. 

 

Marthe Gautier (1925 - 2022)

Marthe Gautier, pediatra francesa, após terminar seus estudos em Harvard, passou a compor uma equipe de pesquisa pediátrica, liderada pelo Professor Raymond Turpin. Sob sua mentoria, nos anos 50, Gautier conduziu experimentos que levaram à descoberta da “trissomia 21”, a anomalia cromossômica em que uma cópia extra do cromossomo 21 leva à síndrome de Down. No entanto, o assistente pediatra de Turpin, Jerome Lejeune, levou o crédito pela descoberta - alavancando sua reputação na comunidade científica - após fornecer a Gautier o equipamento capaz de fotografar o campo microscópico, mas sem deixá-la ter acesso às fotos com os resultados. 

A descoberta de Gautier, não só foi uma descoberta importante para evolução de conhecimentos sobre a síndrome de Down por si só, mas foi também a primeira vez que se identificou um link causal entre uma anormalidade cromossômica e comprometimento cognitivo na ciência. Após perceber o tamanho da descoberta, em 1958, Jerome apresentou os experimentos como seus, no Congresso de Genética Humana, em Montreal, no Canadá, omitindo até mesmo o nome de seu mentor de longa data, Turpin. No ano seguinte, na corrida pela publicação, ainda sem dar chance a Gautier de analisar as fotografias da trissomia, Jerome ligou para Gautier avisando que iria enviar o artigo da descoberta “conjunta” para Academia de Ciências no dia seguinte. Apesar de ter sido mantida no escuro, Gautier aprovou o rascunho oral transmitido a ela por telefone. 

O resultado foi um artigo co-escrito sob o nome de três autores. O autor principal, supostamente, idealizou e conduziu os experimentos: Jerome Lejeune. A segunda autora: “Marie Gauthier”... e, finalmente, o diretor do laboratório - Raymond Turpin - foi citado por último. Infelizmente, o erro ortográfico no nome de Marthe, foi por parte de Jerome, não minha. Ele seguiu traçando caminhos de sucesso - sendo denominado “O Pai da Trissomia 21” e ganhando diversos prêmios e cargos - enquanto Marthe, se afastou do campo da genética e passou a se dedicar a pacientes pediátricos vivendo com condições cardíacas. 

Dando um pulo na linha do tempo, já em 2007, após a morte de Jerome (em 1994) e a criação da Fundação Jerome Lejeune - organização ultra-conservadora criada por seus filhos - o pesquisador se tornou candidato à canonização. Para que ocorra esse processo de canonização e a pessoa seja considerada um santo aos olhos da igreja católica, deve haver a compilação de evidências que comprovem a reputação impecável do candidato. Ao perceber tal movimentação, Patricia Jacobs - pesquisadora escocesa que descobriu conjuntamente o cromossomo X extra, responsável pela síndrome de Klinefelter - escreveu uma carta ao Papa, contando da maneira com a qual Jerome ascendeu sua carreira científica às custas de Marthe. Ela não foi a única a escrever uma carta endereçada ao Vaticano, diversos outros médicos também contribuíram para a exposição da verdade. Como resultado, Gautier foi convidada para dar testemunho em frente de uma Comissão Católica em Paris e aceitou. 

Quem não gostou muito da notícia foi a Fundação Jerome Lejune, mas agora o cenário era diferente. Gautier, então, possuía o apoio de inúmeros membros da academia científica, inclusive de Raymond Turpin, que havia tomado medidas legais contra a maneira como a instituição estava dando créditos exclusivos a Jerome pela descoberta da trissomia 21. Assim, em 2009, marco de 50 anos da descoberta da trissomia 21, Marthe foi encorajada a recontar sua história ao mundo por seus colegas, sendo ouvida por diversos jornais dentro e fora da França. 

Finalmente, em 2014, na “Conference of Human and Medical Genetics”, a Sociedade Francesa de Genética Humana decidiu unanimemente premiar a brilhante pesquisadora. Sua premiação, no entanto, foi cancelada, pois representantes da Fundação Jerome Lejune queriam gravar seu discurso a fim de usá-lo em uma ação judicial de difamação, e sua presença como espectadora na Conferência foi negada. Assim, recebeu seu prêmio nos bastidores, aos 88 anos, sentindo novamente o gosto da rejeição que sentiu em 1959, quando foi deixada às sobras por suas descobertas. 

 

Figura 02:

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Fonte: https://casdinteret.com/2022/10/marthe-gautier-forgotten-by-the-misogynistic-march-of-history/ 

#ParaCegoVer: Foto não-colorida de Marthe Gautier observando através de um microscópio. Atrás dela, gabinetes sem identificação. 

 

Assim como no caso de Gautier, até quando há a chance de mudar o curso da história, a opressão pode ser maior que todos seus esforços. No entanto, existem registros que permitem que o nome dessas cientistas possa ser defendido, e seu reconhecimento - em certa escala - possa ser dado.

Todas as histórias que compartilhei aqui, todavia, têm em comum o fato de protagonizarem mulheres brancas do norte do globo. Para além de uma escolha minha, de compartilhar especificamente essas histórias, são elas as personagens principais da maior parte dos relatos que encontrei.

Certamente, existem outras “Cassandras” na ciência que tiveram suas descobertas e histórias apagadas para além do ponto de reparação. Sem registros que comprovem sua existência, seus retratos, apesar de perfeitamente imagináveis, não poderão mais ser elucidados. Quantas mulheres pretas, pardas, indígenas, latinas e trans não foram simplesmente apagadas da história da ciência? Sem contar as que tiveram seus sonhos podados, sem oportunidade de desenvolver suas ideias e fazer ciência.

Podemos, então, lutar pelo reconhecimento das mulheres que estão fazendo ciência agora, vistas como casos excepcionais, para tentar impedir que apareçam novas “Cassandras” na história da ciência. 

A seguir, deixo alguns nomes de mulheres, entre várias, atuantes na Faculdade de Medicina da Bahia que produzem ciência hoje.

 

Profa. Dra. Ângela Scippa 

Possui graduação em Medicina pela Universidade Federal da Bahia, doutorado em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo. Atualmente, é professora Titular do Departamento de Neurociências e Saúde Mental da Faculdade de Medicina da Bahia e Professora Permanente do Programa de Pós-graduação em Medicina e Saúde da UFBA. Coordena o Centro de Estudos de Transtornos de Humor e Ansiedade (CETHA) da UFBA. É membro Titular da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e da International Society of Bipolar Disorder (ISBD). Tem experiência na área de medicina, com ênfase em psiquiatria, atuando principalmente nos temas: depressão, transtorno bipolar, antidepressivos, psicofarmacologia e suicídio.

 

Profa. Dra. Kionna Bernardes 

Doutora em Saúde Pública pelo Instituto de Saúde Coletiva (ISC/UFBA) ,com área de concentração em Epidemiologia e Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Feira de Santana, graduada em Fisioterapia pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública. Atualmente, é professora adjunta da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia atuando em ensino, pesquisa e extensão. Tem experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase em Epidemiologia, principalmente nos seguintes temas: Saúde do Trabalhador, Atenção Primária em Saúde e Média Complexidade, Validação de Instrumentos de Pesquisa e Inovação Tecnológica. Editora Associada da Revista Brasileira de Saúde Ocupacional (RBSO), revisora de periódicos científicos nacionais e internacionais. Participa de projetos de pesquisa e consultoria técnica financiados pelo CNPQ, FAPESB, Ministério da Saúde e Center for Disease Control and Prevention (CDC).

 

Profa. Dra. Luciana Barros Oliveira

Possui graduação em Medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia, doutorado em Endocrinologia pela Universidade de São Paulo (2001) e pós-doutorado em Endocrinologia Reprodutiva no Massachusetts General Hospital - Harvard University (2014). Tem experiência na área de Medicina, com ênfase em Endocrinologia, atuando principalmente nos seguintes temas: distúrbios do desenvolvimento sexual (DDS), biologia molecular como ferramenta para estudos genéticos em hipogonadismo e DDS, transexualidade e a patogenia da Doença de Chagas e Acidente Vascular Cerebral. Coordenadora do Ambulatório Transexualizador do HUPES-UFBA.

 

Profa. Dra. Maria de Fátima Dias Costa

Graduada em Medicina é doutora em Neurociências - Universidade de Paris XII. Professora Titular de Bioquímica Médica vinculada à Universidade Federal da Bahia, tem pós-doutorado pela Universidade Paris-Val-de-Marne. Atua nas nas áreas de Bioquímica e Neurociências, desenvolvendo projetos voltados para os seguintes temas: interação neurônio-glia, neurotoxicidade, neuroinflamação e resposta imune do sistema nervoso a agentes inflamatórios, modulação da neuroinflamação por flavonoides e outras plantas medicinais. Orienta alunos nos programas de Imunologia e Processos Interativos (UFBA) e no Doutorado de Neurociências (UFRJ). É pesquisadora do grupo Laboratório de Neuroquímica (ICS-UFBA) e do INCT de Neurociência Translacional (INNT); atua ainda em planejamento, gestão de atividades de pesquisa e pós-graduação e em avaliações institucionais.

 

Referências: 

  1. O MITO de Cassandra E a Credibilidade Da Ciência. [S. l.], 19 ago. 2021. Disponível em: www.souzaaranhamachado.com.br/2021/08/o-mito-de-cassandra-e-credibilidade-da-ciencia/. Acesso em: 28 jun. 2023.
  2. GREAT Women Scientists Left in the Shade. [S. l.], 11 maio 2015. Disponível em: www.bbvaopenmind.com/en/science/leading-figures/great-women-left-in-the-shade-of-science-history/. Acesso em: 28 jul. 2023.
  3. FEMINIST Perspectives on Science. [S. l.], 23 dez. 2009. Disponível em: https://plato.stanford.edu/entries/feminist-science/#QueeScieStudNewMat. Acesso em: 28 jul. 2023.
  4. MULHERES no anonimato: Rosalind Franklin e a descoberta da estrutura do DNA. [S. l.], 24 jan. 2022. Disponível em: https://warren.com.br/magazine/rosalind-franklin-descoberta-estrutura-dna/. Acesso em: 28 jul. 2023.
  5. MARTHE Gautier, Forgotten by the Misogynistic March of History. [S. l.], 7 out. 2022. Disponível em: casdinteret.com/2022/10/marthe-gautier-forgotten-by-the-misogynistic-march-of-history/. Acesso em: 28 jul. 2023.
  6. JEROME Lejeune, the Saint who Stole the Scientific Spotlight. [S. l.], 21 out. 2022. Disponível em: casdinteret.com/2022/10/jerome-lejeune-the-saint-who-stole-the-scientific-spotlight/. Acesso em: 28 jul. 2023.

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