Nobel, Darwin e bebês: o que a edição gênica nos permite fazer?

Que a seleção natural elege as características que perpetuam nas espécies, nós sabemos. Mas e se… a natureza não mais fosse a única com esse poder?

 

Em algum momento da sua formação, provavelmente ainda na escola, você deve ter ouvido falar sobre isso que eu pretendo abordar: o uso da bioengenharia como terapia gênica.

Mas, até chegar lá, nós seguiremos pelo seguinte caminho:

 

  • Introdução à bioengenharia e terapia gênica;
  • Avanços científicos da CRISPR-CAS-9;
  • Retomada de conceitos de seleção natural;
  • Implicações da ferramenta terapêutica no processo seletivo natural.

 

Introdução à bioengenharia e terapia gênica

 

O avanço da biologia genética, junto ao da bioengenharia, permitiu o surgimento de uma forma de tratamento através da medicina de precisão - a qual alia os dados do perfil genético do indivíduo às formas tradicionais de diagnóstico (a partir de sinais, sintomas e exames) e tomada de conduta. Esse tratamento inovador é a terapia gênica.

Trata-se de um sonho, um vislumbre, uma vez utópico da comunidade das ciências biológicas e da saúde, de alcançar o melhoramento genético visando desfechos clínicos positivos por meio da edição do genoma humano ou sítio-específicas..

 

A terapia gênica traz consigo as seguintes vantagens:

  1. O princípio da não maleficência, ao permitir a escolha de drogas que tenham melhor custo benefício, considerando resultados ou possíveis danos e efeitos colaterais;
  2. Prevenção, ao permitir a detecção de susceptibilidade a certas doenças antes de sua manifestação clínica, seu monitoramento e profilaxia.
  3. Avanço no desenvolvimento de soluções individuais para pacientes.

Fonte:  IPEA  

 

#PraCegoVer: esquema com três pacientes acometidos por uma doença X que passam por testes genéticos avaliadores da responsividade a certo tratamento. A partir dele saem 3 setas dos resultados, respectivamente: sem efeito, sem efeito, efeito esperado. Dos “sem efeito” setas levam a “evita gastos e risco” e, em seguida, a “outras alternativas de tratamento”. Do “efeito esperado” uma seta leva a “tratamento existente para a doença X”.

 

Então, em resumo, a medicina de precisão diz respeito à adaptação do tratamento médico às características individuais de cada paciente. Mas isso, de forma alguma, quer dizer a criação de intervenções médicas exclusivas para um paciente, e sim a capacidade de separar os indivíduos em grupos de acordo com a sua susceptibilidade a uma determinada doença, seu prognóstico ou resposta a um tratamento específico. Dessa forma, as intervenções podem se concentrar naqueles que se beneficiarão, retomando a primeira das vantagens abordadas acima.

 

Para atingir esse objetivo, essa área faz uso da manipulação de vetores para as modificações gênicas, podendo eles ser plasmidiais, nanoestruturados ou virais, sendo utilizados em células somáticas e em terapia de linhagem germinativa, de alterações hereditárias (guarde isso!!!)

Foi a partir da observação e estudo de procariontes que se descobriu a existência do DNA CRISPR e seu interessante papel no mecanismo de defesa nesses seres, o que mais tarde possibilitou o desenvolvimento da técnica de edição gênica CRISPR/CAS9.

 

Avanços científicos da CRISPR-CAS9

 

Figura 1

cientistas de mãos dadas.jpg

Fonte: G1 - Globo

#PraCegoVer: à esquerda, uma mulher branca de cabelos pretos, usando um terno preto, sorrindo. À direita, uma mulher branca de cabelos loiros, usando um vestido de renda preto, sorrindo. Elas caminham de mãos dadas e cada uma segura um canudo de certificado.

 

Essas mulheres, Emmanuelle Charpentier e Jennifer Doudna, foram laureadas com o Prêmio Nobel de Química em 2020 pelo desenvolvimento da técnica de edição gênica, intitulada “CRISPR/CAS9”, que é a mais precisa e sofisticada na engenharia genética hoje em dia, utilizada desde 2012. Tal técnica já foi empregada para editar o genoma de microrganismos, plantas e animais. Criando, até mesmo, vegetais super resistentes a pragas e a condições adversas de clima e de ambiente. Essa se tornou, então, a primeira vez em que o grupo de pessoas vencedoras dessa categoria é inteiramente composto por mulheres. 

 

Mas, afinal, como elas tornaram essa técnica possível? Como criaram um método de edição que identifica e usa tesouras para recortar trechos específicos do DNA?

Figura 2

mecanismo CRISPR-Cas9.png

Fonte: Biology Stack Exchange

#PraCegoVer: representação do processo de clivagem de DNA por meio da técnica CRISPR/CAS9. Uma sequência alvo, que faz parte de uma dupla fita vermelha de DNA genômico, sofre ação da proteína CAS9 em azul, que recorta a sequência orientada pelo complexo crRNA-tracrRNA

 

No ano de 2011, Emanuelle Charpentier descobriu a molécula de tracrRNA durante seu estudo sobre o patógeno Streptococcus pyogenes, quando notou que essa era uma molécula essencial para a “memória imunológica” da bactéria em questão que incorpora, em um trecho de seu genoma chamado DNA CRISPR, pedaços do material genético dos bacteriófagos que a infectavam. Paralelamente, a bioquímica Jennifer Doudna já havia tentado realizar o recorte de sequências de DNA em laboratório utilizando apenas o DNA CRISPR e a enzima CAS9, mas sem sucesso. A peça que faltava era a recém descoberta tracrRNA, intermediadora das duas outras.

 

Juntas, as pesquisadoras conseguiram reproduzir a “tesoura”, abrindo portas para uma infinidade de edições guiadas e altamente específicas no DNA de qualquer espécie.

O principal objetivo da medicina de precisão, por meio desse mecanismo, é prevenir e curar doenças principalmente de caráter hereditário, como cânceres e hemofilia. 

 

 

Retomada de conceitos de seleção natural

 

Figura 3

darwin.jpg

Fonte: Blog Alex Diniz

#PraCegoVer: Em preto e branco, Charles Darwin com uma característica barba branca e longa. À esquerda da imagem, um de seus rascunhos de linhagem filogenética das espécies. 

 

O Darwinismo, um dos meus assuntos preferidos da biologia de ensino médio, traz consigo alguns conceitos que revolucionaram as ciências biológicas e tornaram Darwin o “pai da evolução”. 

Darwin afirmou que as espécies evoluem, ou seja, mudam. Mudam as suas características e, por causa disso, torna-se possível o surgimento de novas espécies. Para tal, ele conceituou o principal mecanismo que define quais características ficam: a seleção natural. Para um homem em 1850 que não possuía nenhum conhecimento em genética, a seleção natural era esse mecanismo que agia, de uma forma que ele não sabia como, sobre algo que ele não sabia o que era e que resultava na seleção das características melhor adaptadas a um ambiente em um determinado tempo. 

 

Hoje, nós sabemos que a seleção natural é uma força que elege, em meio à variabilidade genética, os alelos que resultam em fenótipos de melhor desempenho, portanto, adaptação no ambiente, aumentando sua frequência na população e perpetuando, então, as características de interesse.

 

Em palavras diretas: o mais adaptado sobrevive, por sobreviver produz descendentes e perpetua, assim, suas características na população. A natureza seleciona os genes a permanecer sendo reproduzidos.

 

Mas… e o CRISPR/CAS9? 

A questão é que, com essa tecnologia, nós somos teoricamente capazes de eleger os genes de interesse e, por meio da terapia de linhagem germinativa, transmiti-las aos nossos descendentes, né? 

 

Implicações da ferramenta terapêutica no processo seletivo natural

 

Veja bem, meu caro leitor, por favor não me leve a mal! Em momento algum eu quis dizer que essa é uma prática que destronaria a seleção natural do controle de sua divina função; pelo contrário. Eu não excluo a possibilidade de que, em um futuro talvez-um-pouco-distante, algum evento de grande magnitude, ambiental ou não, coloque à prova as características selecionadas por meio dessa intervenção e acabar extinguindo-nas. 

O que eu trago aqui melhor se aproxima de uma reflexão, que já foi levantada desde que surgiu a possibilidade da edição gênica como melhoramento genético.  

 

Ainda em 1991, James Watson - bioquímico e um dos responsáveis pelo modelo revolucionário da dupla fita de DNA - apontou que, apesar da preocupação possível com as novas descobertas de modificação das estruturas genéticas, tais estruturas nada são senão um produto da evolução. Que, de fato, foram assim moldadas por nos permitirem adaptação a certas condições que podem sequer ainda existir (prova disso seriam, por exemplo, o que chamamos de estruturas vestigiais). Afinal, estamos todos cientes de nossas imperfeições, por que não nos tornar um pouquinho mais aptos à sobrevivência?

 

 

Essas questões esbarram na bioética, que tem se mostrado bem conservadora no assunto, principalmente por ameaçar a diversidade e trazer à tona debates sobre o critério de seleção dessas características. Eu posso escolher ter um filho de olho azul? Posso fazer com que ele seja alto e sem miopia? Editar genótipos que resultem em fenótipos como o nanismo, por exemplo, são justificáveis ou vêm de puro preconceito?

Em 2015, na China, foram realizadas, com aprovação do comitê de ética local, modificações genéticas em embriões humanos utilizando a técnica CRISPR-CAS9. Pouco tempo depois, outro grupo chinês realizou o mesmo procedimento a fim de tornar os embriões resistentes ao HIV pela inserção da mutação do gene CCR5. Os resultados mostraram uma taxa de sucesso baixa, o que se traduz na necessidade de mais estudo, prática e aperfeiçoamento da técnica utilizada em linhagem germinativa visando hereditariedade.

 

 

E aí? um mecanismo com tanto potencial para nos tornar mais aptos à sobrevivência pode sair pela culatra? Será que daríamos o azar de eleger uma característica que pode significar a extinção depois de uma mudança ou catástrofe ambiental? Será que eu posso escolher os traços do meu bebê? Eu pessoalmente acho que a humanidade não está pronta para brincar de Deus. Ou de Natureza, que seja. 

 

 

Referências:

GONÇALVES, G; PAIVA, R.Gene therapy: advances, challenges and perspectives. 

 

NAKANISHI M. Precision medicine. Braz J Otorhinolaryngol. 2018;84:263-64. RYE, C; WISE, R; 

 

JURUKOVSKI, V; DESAIX, J; CHOI, J; AVISSAR, Y. OpenStax, Biology. Oct 21, 2016; Houston, Texas

 

UZIEL,D. Medicina de Precisão: o que é e que benefícios traz?  07/11/2019

   

ZIGLER, M. Os avanços e riscos da edição gênica na área da saúde, 11/10/2018. Agência FAPESP

 

https://www.nationalgeographic.com/magazine/graphics/the-21-most-fascinating-scientific-discoveries-of-2021  Acesso em: 04/06//2022

 

https://www.nature.com/articles/d41586-021-03734-6 Acesso em: 04/06/2022

 

https://super.abril.com.br/ciencia/como-funciona-o-crispr-metodo-de-edicao-genetica-que-venceu-o-nobel-de-quimica/amp/ Acesso em: 04/06/2022

 

0 Comentários

Deixe um comentário