Ética em pesquisa e o caso Henrietta Lacks

Na década de 1950, as células de Henrietta Lacks tornaram-se a primeira linha de células humanas a se dividir indefinidamente em condições ideais de laboratório, característica que as tornaram conhecidas como células imortais. Essas células foram utilizadas no desenvolvimento de pesquisas sobre o câncer, infecções virais (como HIV e sarampo) e ajudaram nos estudos sobre remédios para o mal de Parkinson, herpes, leucemia e hemofilia. Além disso, foram fundamentais para o aperfeiçoamento das técnicas de padronização de cultura celular e para o desenvolvimento da vacina contra a poliomielite [1-2].

 

Nota-se, portanto, a expressiva importância das células HeLa para o avanço científico, apesar da problemática circunstância de sua descoberta. 

 

A seguir, caro leitor, entenderemos qual a origem dessas células e como o contexto de sua descoberta fomenta o necessário e importante debate sobre ética em pesquisa. 

 

A história da Henrietta Lacks 

Henrietta Lacks nasceu em 1920 na Virgínia, EUA, em uma família humilde e descendente de ex-escravizados. Começou a trabalhar muito jovem e teve seu primeiro filho aos 14 anos. Aos 21 anos, casou-se com David Lacks, pai do seu primogênito, e juntos tiveram mais quatro filhos [1-2].

 

Figura 01: Fotografia de Henrietta Lacks

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Fonte: NBC

#PraCegoVer: Foto antiga de uma mulher negra sorrindo para câmera.

 

Em 1950, ela descobriu um caroço no colo do útero, mas inicialmente relutou em buscar ajuda médica. Naquela época, os Estados Unidos vivenciavam um período de segregação racial e até mesmo hospitais como o Johns Hopkins, que atendiam pessoas negras e de baixa renda, possuíam áreas designadas especificamente para esses pacientes. Após ter procurado ajuda, Henrietta foi diagnosticada com câncer do colo do útero, e, antes mesmo de iniciar o tratamento, seu material biológico foi coletado e enviado, sem o seu consentimento, para o Dr. George Gey, chefe do departamento de culturas de tecidos do Hospital Johns Hopkins.

O Dr. Gey codificava as células que analisava usando as duas primeiras letras do primeiro e do último nome do paciente de quem o material biológico havia sido coletado. Assim, as células de Henrietta Lacks passaram a ser chamadas de células HeLa.

Desde 1920, ele se dedicava à análise de amostras biológicas de mulheres diagnosticadas com câncer cervical, com o objetivo de descobrir sua causa e, por conseguinte, encontrar uma cura para essa doença. Sua busca consistia em encontrar células humanas capazes de se dividir continuamente em condições laboratoriais ideais, permitindo-lhe realizar testes e identificar as causas do câncer, a fim de desenvolver tratamentos mais eficazes [1-2].

Diferente das outras células, as quais morriam poucos dias após serem cultivadas, as células HeLa possuíam a característica de continuar dividindo-se de maneira rápida, o que possibilitou a sua utilização para a realização de inúmeros estudos [1-2]. Assim, além de terem sido usadas nas pesquisas citadas no início desse texto, também foram fundamentais em outros importantes estudos, como em pesquisas sobre a tuberculose e o Papilomavírus humano (HPV) [3].

Em 1951, depois de alguns meses de tratamento no Hospital John Hopkins, Henrietta Lacks faleceu após evolução metastática do câncer.

Nos dias atuais, as células HeLa continuam promovendo avanços, exemplo é que, durante a pandemia, elas foram utilizadas em estudos sobre o COVID-19 [4].

 

Princípios éticos que devem nortear as pesquisas com seres humanos

Uma das principais questões no debate sobre ética em pesquisa envolvendo seres humanos é se os fins justificam os meios, ou seja, se vale a pena submeter um grupo de indivíduos a um certo risco ou nível de sofrimento caso isso resulte em benefícios para um número maior de pessoas no futuro.

 

Nesse sentido, ainda que o próprio debate sobre a ética ultrapasse a esfera científica, a compreensão e a deliberação sobre esse conceito são necessárias para um avanço científico responsável, em especial quando se trata de pesquisas nas áreas médicas. É fundamental que esse progresso tenha como objetivo beneficiar a coletividade e/ou os indivíduos e, ao mesmo tempo, considere o bem-estar dos seres humanos que participam desses estudos. Desse modo, é crucial a presença da ética no desenvolvimento de qualquer estudo científico, objetivando, dentre outras coisas, que toda e qualquer pesquisa não provoque qualquer dano intencional aos participantes que a ela estão submetidos. 

 

Assim sendo, em 1979, o filósofo americano Tom Beauchamp e o teólogo James Chidress, que eram vinculados ao Kennedy Institute of Ethics, escreveram, no livro Princípios da Ética Biomédica, quatro dos princípios éticos expostos a seguir:

 

  • Autonomia: garantir que o participante de uma pesquisa possua a capacidade para agir intencionalmente, assim: ele deve ter o direito de escolher se quer ou não participar da pesquisa, de obter informações sobre o que vai ou o que pode acontecer ao decorrer do estudo e de retirar-se da pesquisa a qualquer momento [5-6].
  • Não maleficência: não causar, intencionalmente, qualquer dano ao participante, ainda que se tenha um fim útil. Os fins, neste caso, não justificam os meios [5-6].
  • Beneficência: contribuir para o bem-estar dos participantes, maximizando os possíveis benefícios e atenuando os possíveis danos [5-6]. 
  • Justiça: tratar os desiguais, desigualmente, buscando a igualdade por meio da equidade [5-6].

 

Com esse breve resumo, compreende-se como a ética desempenha um papel fundamental no cuidado dos participantes de pesquisas clínicas, uma vez que seus princípios estabelecem os parâmetros do que é considerado ético, fornecendo uma base para a condução de pesquisas éticas. Esses princípios são essenciais para garantir que os participantes sejam tratados com respeito, proteção e consideração pelos seus direitos e bem-estar.

 

A importância da ética na pesquisa clínica

“Um fisiologista não é um homem que segue as tendências do seu tempo, mas um homem de ciência, absorvido pela ideia científica que ele persegue: ele já não ouve os gritos dos animais, ele já não vê o sangue que jorra, ele vê apenas sua ideia, e percebe apenas organismos escondendo problemas que ele pretende resolver. Da mesma forma, nenhum cirurgião é impedido pelos gritos e soluços mais comoventes, pois ele vê apenas sua ideia e o propósito da operação [...]. Consideramos fútil ou absurda toda discussão sobre a vivissecção. [...] E como é impossível satisfazer a todos, um homem de ciência deve atender unicamente à opinião dos homens de ciência que o compreendem, e deve estabelecer suas regras de conduta com base exclusivamente em sua própria consciência.” (BERNARD, 1957, p. 103). 

 

Foge do escopo deste texto falar sobre a ética em pesquisas envolvendo animais, mas a citação exposta acima é uma declaração do Claude Bernard, prestigiado fisiologista do século XIX, sobre a experimentação animal realizada por cientistas. Ela destaca a existência de uma visão antiquada que sustenta que o progresso científico pode e deve justificar qualquer coisa, inclusive a aplicação deliberada de sofrimento como resultado das ações durante o processo de pesquisa.

 

Agora, retornando à pauta sobre pesquisa clínica propriamente dita, no início do século XX, antes mesmo do caso Henrietta Lacks, os Estados Unidos já desenvolviam estudos sem qualquer base ética, como o Caso Tuskegee.

 

Figura 02: O estudo da sífilis não tratada de Tuskegee

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Fonte: Zebra Strategies

#PraCegoVer: Fotografia em preto e branco mostra mais de 20 homens negros formando uma fila para serem atendidos por uma enfermeira e um médico, ambos brancos.

 

Entretanto, ainda que esses estudos ocorressem, somente após o fim da Segunda Guerra Mundial, com a divulgação dos horrores que envolviam os experimentos realizados em humanos por pesquisadores e médicos nazistas, ampliou-se a discussão sobre a necessidade da ética na pesquisa. Tal debate deu origem ao Código de Nuremberg, em 1947, o qual, além de estabelecer princípios éticos para realização de pesquisas com seres humanos, objetivava impedir a repetição da instrumentalização da ciência para justificar a aplicação, intencional e desmedida, de dor e sofrimento aos participantes de qualquer estudo científico [8].

 

Posteriormente, em 1964, a Associação Médica Mundial reconheceu algumas limitações no Código de Nuremberg, pois este foi elaborado especificamente para julgar os crimes cometidos por médicos nazistas, não sendo direcionado a orientar pesquisadores a discernir o que é ético ou não em outros cenários de pesquisa. Por esse motivo, foi elaborada a Declaração de Helsinque, a qual possui orientações para cumprimento de princípios éticos em pesquisas clínicas [9].

 

Questões éticas no caso Henrietta Lacks

O caso de Henrietta Lacks expressa, de forma categórica, o que é a falta de ética em uma pesquisa. Nele, princípios éticos citados anteriormente (como o da autonomia e da justiça), foram extensamente descumpridos. Henrietta Lacks teve sua autonomia negada, uma vez que suas células foram usadas sem o seu conhecimento e consentimento, o que é agravado quando se compreende o contexto de vulnerabilidade que essa mulher estava inserida.

 

Figura 03: Cena do filme A Imortal Vida de Henrietta Lacks

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Fonte: Nautilus

#PraCegoVer: O material biológico da Henrietta Lacks está contido em uma placa de vidro redonda, em cima da placa consta um adesivo com a data de nascimento e o nome de Henrietta Lacks, o qual está riscado e deixa aparecer apenas as duas primeiras letras do seu nome e sobrenome, formando "HeLa".

 

Apesar da retirada do material biológico não ter impactado na integridade da saúde física de Henrietta Lacks, os prejuízos advindos dessa ação marcaram a vida dela e de seus familiares.

 

A família de Henrietta só soube sobre a existência das células HeLa 20 anos após sua morte, não recebendo explicações efetivas sobre as características que faziam essas células serem chamadas de imortais e nem sobre a importância que elas tiveram para a ciência. Consequentemente, ao saberem que essas células eram reproduzidas em laboratório, mesmo décadas após Henrietta ter sido declarada morta, os membros de sua família passaram a acreditar que a própria Henrietta ainda estivesse viva e sendo mantida em laboratório, causando espanto e revolta [10].

 

Além disso, na época que o material de Henrietta foi coletado, não existiam diretrizes éticas assegurando o compartilhamento de ganhos obtidos, o que permitiu que sua família não recebesse qualquer benefício financeiro advindos dos incontáveis usos das células HeLa em diferentes pesquisas.Em outras palavras, essas células revolucionaram a medicina e geraram grandes lucros para a bilionária indústria da biotecnologia, mas, apesar disso, a família de Lacks não recebeu qualquer compensação financeira pelo uso delas.

 

Em 2021, 70 anos após a morte de Henrietta Lacks, a Organização Mundial da Saúde (OMS) a homenageou e entregou um prêmio para seu filho,  Lawrence Lacks, com o objetivo de fomentar a luta pelo fim de injustiças científicas e a promoção da igualdade racial, além do reconhecimento das mulheres na ciência. Embora não seja capaz de eliminar completamente as consequências do passado, esse gesto representa um passo crucial em direção a uma significativa reparação histórica [11]. 

O apagamento da história da mulher que deu origem às células HeLa demonstra a necessidade de uma visão interseccional tanto para esse caso, quanto para outras pesquisas antiéticas envolvendo grupos minoritários, como os já citados Caso Tuskegee e experimentos realizados na Alemanha Nazista.

 

Desse modo, prezado leitor, ao compartilhar a história por trás de algo tão revolucionário para a ciência, como as células HeLa, buscamos, além de dar foco para essa história e o seu obscuro contexto, transmitir a importância fundamental da ética no desenvolvimento de pesquisas sérias e confiáveis. Afinal, o caso da Henrietta Lacks, dentre tantos outros, demonstra como a ciência pode ser utilizada para justificar e fomentar a utilização de meios antiéticos para obtenção de possíveis fins úteis, especialmente na medicina. 

 

Referências:

  1. SKLOOT, R. A Vida Imortal de Henrietta Lacks. 1a edição ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
  2. PAIVA, A. Princípios de design para o ensino de biologia celular: pensamento crítico e ação sociopolítica inspirados no caso de Henrietta Lacks. Tese. Instituto de Física, Universidade Federal da Bahia. Salvador, p.392. 2019.
  3. HEALTH@FAWCO.ORG. The Immortal Cancer Cells of Henrietta Lacks. Disponível em: <https://www.fawco.org/global-issues/health/health-articles/4484-immortal-cancer-cells-the-hela-cell-line>. Acesso em: 3 dez. 2022. 
  4. JACKSON, N. Vessels for Collective Progress: the use of HeLa cells in COVID-19 research. Disponível em: <https://sitn.hms.harvard.edu/flash/2020/vessels-for-collective-progress-the-use-of-hela-cells-in-covid-19-research/>. Acesso em: 3 dez. 2022. 
  5. VARKEY, B. Principles of Clinical Ethics and Their Application to Practice. Medical Principles and Practice, v. 30, n. 1, p. 17–28, fev. 2021. 
  6. Princípios bioéticos: entenda sobre eles aqui - Blog do Portal Educação. Disponível em: <https://blog.portaleducacao.com.br/principios-bioeticos-entenda-sobre-eles-aqui/>. Acesso em: 3 dez. 2022.
  7. BERNARD, Claude. An introduction to the study of experimental medicine. New York: Dover Publications, Inc. 1957.
  8. MAIA, D. Afinal, o que é Código de Nuremberg? | Politize! Disponível em: <https://www.politize.com.br/codigo-de-nuremberg/>. Acesso em: 4 dez. 2022.
  9. Código de Nuremberg e Declaração de Helsinki: transformações e atualidades. Disponível em: <https://www.efdeportes.com/efd183/codigo-de-nuremberg-e-declaracao-de-helsinki.htm>. Acesso em: 4 dez. 2022.
  10. ‌LEYSER, Vivian. Resenha: A vida imortal de Henrietta Lacks. ALEXANDRIA Revista de Educação em Ciência e Tecnologia, v. 5, n. 3, p. 243-249, 2012. 
  11. OMS homenageia Henrietta Lacks, cujas células mudaram a ciência. Disponível em: <https://brasil.un.org/pt-br/151822-oms-homenageia-henrietta-lacks-cujas-celulas-mudaram-ciencia>. Acesso em: 6 dez. 2022.

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