Vacina da cocaína e do crack

Como atuam a cocaína e o crack no organismo? É possível frear essa ação? Quais as limitações em relação ao uso da vacina contra essa substância? Entenda o que há de mais recente sobre o tema.

Sumário

Panorama atual e ação da cocaína e crack no organismo

Como funciona a vacina e o que mostram os estudos

Limitações e conclusão

 

Panorama atual e ação da cocaína e crack no organismo

A cocaína corresponde ao composto químico benzoilmetilecgonina ou éster do ácido benzóico, extraído a partir da maceração das folhas da espécie Erythroxylum coca. Possui efeitos estimulantes e anestésicos, o que confere seu potencial recreativo. Por um processo químico, é convertida em cloridrato de cocaína,  e então,  sendo transformada em pó, pode ser aspirada ou injetada e fumada na forma de crack, que corresponde à cocaína misturada com água, bicarbonato de sódio ou amônia, adquirindo um aspecto cristalizado, de “pedra”. Quando fumada, torna a absorção mais rápida e eficaz em relação a via inalatória, por exemplo, pelo grande tamanho da superfície pulmonar, e consequentemente mais rápido seu efeito no organismo.

A cocaína se enquadra nas drogas psicoativas, que agem através da inibição da recaptação de serotonina, noradrenalina e dopamina, mantendo-as por mais tempo na fenda sináptica. Destaca-se nesse processo, a ação da droga bloqueando o transportador de dopamina (DAT). No processo fisiológico de transmissão de informações cerebrais de um neurônio para outro, na região terminal dos dendritos, há a fenda sináptica, na qual há movimentação de neurotransmissores, dentre eles a dopamina. Em condições fisiológicas de prazer, a dopamina é transmitida por um certo período de tempo de um neurônio para o outro, sendo então metabolizada e recaptada para o terminal pré-sináptico pelos transportadores dopaminérgicos (DAT). No caso dessas drogas psicoativas, o mecanismo gera uma perpetuação da dopamina na fenda sináptica por um período maior de tempo, prolongando a sensação de prazer, somado a ação da droga na via mesolímbica - conhecida também como via de recompensa - o que a torna altamente viciante. Com o uso crônico, como boa parte das drogas psicoativas, cria-se dependência - nas primeiras vezes o prazer é mais imediato e tende a durar mais, conforme uso são necessárias doses cada vez maiores para produzir o mesmo efeito. Deve-se ressaltar que a capacidade dessa droga de atravessar a barreira hematoencefálica a torna extremamente danosa para o cérebro. (Luscher, 2013)

Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisa e de Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas (Inpad) da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), o Brasil é o maior mercado mundial de crack e o segundo maior de cocaína, constituindo um verdadeiro problema de saúde pública, em especial nas grandes capitais brasileiras. O tratamento atua no sentido de tentar livrar o usuário da dependência química e física da droga, bem como dos transtornos consequentes gerados. Esse processo abarca educação e prevenção, psicoterapia, apoio social e tratamento adequado (Laranjeira, 2014). Pensando em auxiliar no tratamento (especialmente em auxiliar na terapia e na redução de danos) e baseado no mecanismo de ação da droga no organismo, pesquisadores buscam desenvolver uma vacina.

 

Como funciona a vacina e o que mostram os estudos

Vacina? Isso mesmo. A ideia parte do princípio de induzir o sistema imunológico a neutralizar a cocaína e o crack. Há duas principais vacinas sendo desenvolvidas, que já passaram por estudos pré-clínicos e caminham para estudos em humanos.

A vacina dAd5GNE está sendo desenvolvida por um grupo de pesquisadores da Universidade de Cornell, nos EUA, liderada pelo médico Ronald Crystal, pneumologista que desenvolve pesquisa na área há décadas. O imunobiológico utiliza-se do vírus atenuado Ad5 ligado a uma molécula com estrutura semelhante e derivada da cocaína, chamada de GNE. A partir da exposição a essa combinação, o organismo seria capaz de produzir anticorpos contra a molécula de GNE, e, por semelhança estrutural, também seriam capazes de se ligar às moléculas da cocaína, formando um complexo de alto peso molecular e impedindo, assim, que atravesse a barreira hematoencefálica e alcance o Sistema Nervoso Central, onde ela atua. (Havlicek, 2020)

Em estudos pré-clínicos, esse efeito do inoculante da vacina de bloquear a droga mostrou-se eficaz, especialmente em primatas. Além de bloquear em torno de 60% as moléculas de cocaína no cérebro, ela se mostrou eficaz em reduzir o efeito da cocaína na inativação dos transportadores dopaminérgicos (DAT), base fisiológica da atuação da droga na fenda sináptica, reduzindo também, por consequência, os efeitos psicoativos e fisiológicos da cocaína no organismo.

Figura 01: Gráfico em barras mostrando biodistribuição da cocaína na amostra

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Fonte: “Cocaine Vaccine DAd5GNE Protects against Moderate Daily and High-Dose “Binge” Cocaine Use.”, Havlicek, et al.     

#PraCegoVer: Gráfico com três barras verticais comparando três grupos distintos quanto às variáveis vacinação, repetição da dose e concentração cerebral de cocaína

 

Na Figura 1 temos a representação de três grupos de roedores que foram utilizados para o experimento do estudo, representados no eixo x. No eixo y temos a dosagem de cocaína mensurada no cérebro dos roedores. Em amarelo temos animais que não receberam a vacina e foram expostos a uma dose de cocaína. Em azul temos animais vacinados com dAd5GNE submetidos a uma dose única de cocaína e em vermelho temos animais vacinados com dAd5GNE submetidos a uma dose diária, durante três dias seguidos. A dose padrão da substância foi de 0,1 mg/kg.

A partir da análise de biodistribuição da cocaína cerebral, podemos perceber que, naturalmente, roedores não vacinados apresentaram níveis elevados da substância, enquanto os roedores que foram previamente vacinados tiveram uma redução significativa dos níveis de cocaína no cérebro. (Havlicek, 2020)

 

Figura 02: Gráfico em linhas mostrando atividade locomotora na amostra

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Fonte: “Cocaine Vaccine DAd5GNE Protects against Moderate Daily and High-Dose “Binge” Cocaine Use.”, Havlicek, et al.     

#PraCegoVer: Gráfico em linhas comparando quatro grupos distintos quanto às variáveis vacinação, repetição da dose e distância percorrida em 10 minutos

 

Outra análise feita no estudo foi quanto ao nível de agitação após a introdução da substância nos roedores, comparando o grupo vacinado com o grupo não vacinado. Na figura 2, no eixo x temos o tempo após a vacinação, seja pela vacina em si (dAd5GNE) ou placebo utilizado, no caso o tampão fosfato salino (PBS). No eixo y temos a distância total percorrida pelos roedores no período de 10 min. A dose de cocaína utilizada foi de 1 mg/Kg nas semanas 11, 12 e 13, 2 mg/Kg nas semanas 14, 16 e 18 e 4 mg/Kg na semana 20. Assim temos 4 grupos distintos:

  1. Grupo não vacinado que recebeu cocaína (Naive + cocaine)
  2. Grupo vacinado que recebeu cocaína (dAd5GNE + cocaine)
  3. Grupo não vacinado que recebeu placebo (PBS) (Naive + PBS)
  4. Grupo vacinado que recebeu placebo (PBS) (dAd5GNE + PBS)

A partir da análise do gráfico, percebe-se que a vacinação com dAd5GNE reduz a hiperatividade e consequentemente  a toxicidade induzidas pela cocaína, e que esse efeito se mantém mesmo após o uso repetido e em doses cada vez maiores da substância.

A outra vacina está sendo desenvolvida por um grupo brasileiro da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e liderado pelo médico e pesquisador Frederico Garcia. Tendo observado a dramática situação de mulheres grávidas usuárias de cocaína no ambulatório em que trabalha, além do impacto no neurodesenvolvimento e crescimento do recém-nascido, Frederico desenvolve trabalhos na tentativa de melhora de qualidade de vida e auxílio para interromper o uso da substância por gestantes. A esperança de uma vacina é a de reduzir a passagem da cocaína através da barreira hematoencefálica, minimizando os efeitos da substância no organismo materno e fetal.

O estudo pré-clínico realizado em roedores testou a ação da vacina, que se baseia no seu estímulo em produzir de forma contínua anticorpos IgG contra a molécula de cocaína durante a gravidez e amamentação, impedindo sua ação de forma exacerbada e limitando seus efeitos. A vacina foi nomeada GNE-KLH. Se baseia em um mecanismo de ação semelhante à vacina que está sendo desenvolvida em Cornell, com a diferença que a molécula GNE ao invés de ser ligada a uma molécula de vírus atenuada, é ligada a proteína Keyhole limpet hemocyanin (KLH), obtida a partir de gastrópodes da família Patella. Os estudos pré-clínicos foram realizados em roedores grávidas, buscando avaliar também os impactos na prole. A randomização em dois grupos - vacinação e placebo - permitiu a análise comparada entre os grupos.

 

Figura 03: Gráficos em barra e linha comparando efeitos da vacina GNE-KLH na prole dos roedores utilizados no estudo

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Fonte: “The GNE-KLH Anti-Cocaine Vaccine Protects Dams and Offspring from Cocaine-Induced Effects during the Prenatal and Lactating Periods.”, Augusto, et al.     

#PraCegoVer: Sequência de três gráficos, dois em barra e um em linhas, comparando número da prole, níveis de anticorpos anti-cocaína IgG e anticorpos anti-cocaína IgM

 

No recorte da Figura 3, podemos desprender algumas análises. No gráfico “e” temos uma comparação do número de indivíduos da prole (eixo y) em roedores vacinadas e não vacinadas, em dois momentos distintos - durante o trabalho de parto e no período de desmame materno. Demonstra que mães tratadas com vacina que receberam cocaína durante a gravidez apresentaram uma prole maior no parto e sobrevivência maior desta no período de desmame do que as mães tratadas com placebo que receberam cocaína.

Nos gráficos “f” podemos observar a comparação feita pelos pesquisadores quanto aos níveis de IgG e IgM ligados aos anticorpos anti-cocaína. Apesar de não haver diferenças significativas da concentração de IgM entre os dois grupos, o IgG foi significativamente maior na prole da mãe tratada com vacina do que na prole da mãe tratada com placebo. O gráfico “g” demonstra a concentração de anticorpos anti-cocaína IgG no leite materno, a partir de um experimento em que foi feita a adsorção de cocaína com leite materno dos roedores, sugerindo que os anticorpos produzidos estavam ligados à cocaína. Esse experimento reitera a capacidade do conteúdo da vacina em se ligar às moléculas de cocaína na corrente sanguínea e impedir sua passagem para o SNC de forma acentuada, bem como ter o potencial de ser transmitida para a prole pelo leite materno.

 

Figura 04: Gráficos em barra comparando efeitos da vacina GNE-KLH na prole dos roedores utilizados no estudo

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Fonte: “The GNE-KLH Anti-Cocaine Vaccine Protects Dams and Offspring from Cocaine-Induced Effects during the Prenatal and Lactating Periods.”, Augusto, et al.     

#PraCegoVer: Dois gráficos em barra, comparando a distância percorrida e número de passagens pela zona central em roedores vacinados e não vacinados

 

De forma semelhante ao estudo de Cornell, os pesquisadores da UFMG mensuraram a distância percorrida pelos roedores como um dos parâmetros de atividade psicomotora induzida pela cocaína. Para tal utilizaram, além da distância total percorrida, o número de vezes em que os roedores passaram pela área central do local de teste, a fim de estimar a mudança de posição pelo local em que foram confinados para a realização do teste. Na Figura 4 temos dois gráficos em barra que representam esse parâmetro. Pode-se observar que a prole da mãe tratada com vacina apresentou menor atividade locomotora induzida por cocaína e menores entradas na zona central do que a prole da mãe tratada com placebo.

 

Figura 05: Representação esquemática comparando efeitos psicomotores da vacina GNE-KLH na prole dos roedores utilizados no estudo

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Fonte: “The GNE-KLH Anti-Cocaine Vaccine Protects Dams and Offspring from Cocaine-Induced Effects during the Prenatal and Lactating Periods.”, Augusto, et al.     

#PraCegoVer: Representação esquemática comparativa da distância percorrida entre roedores vacinados e não vacinados que receberam cocaína

 

Na Figura 5, podemos ter uma dimensão mais visual da diferença da atividade locomotora entre os roedores que foram vacinados e os do grupo placebo. Em especial ao comparar a linha 2 com a linha 4 do gráfico, que corresponde a roedores que foram vacinados e receberam cocaína e roedores não vacinados que receberam cocaína, respectivamente. Nota-se uma redução considerável da atividade motora secundária aos efeitos da cocaína, reiterando a ação da vacina em frear os efeitos da droga no organismo.

 

Limitações e conclusão

Com resultados promissores em roedores e macacos, ambos os pesquisadores de Cornell e da UFMG pretendem iniciar o teste em humanos. Aí entrariam limitações éticas inerentes a esse tipo de pesquisa clínica, como dificuldade em encontrar indivíduos dispostos a participar e que sigam o tratamento, bem como acompanhamento pelos pesquisadores. Soma-se o fato dos indivíduos do estudo estarem em uma posição de vulnerabilidade, dependência química e instabilidade psicocomportamental. Também podemos citar dificuldade de verba e acesso jurídico para utilizar a cocaína ou moléculas similares (como a GNE) em estudos, por se tratar de uma droga ilegal, algo que exigiria uma regulamentação específica, ainda mais por se tratar de estudos em humanos. Assim, apesar das limitações, a vacina representa um avanço importante como aliado ao tratamento do vício em cocaína e crack, que associado à educação, prevenção, psicoterapia e apoio social, pode vir a constituir uma ferramenta de combate a um problema de saúde pública que se alastra há décadas, bem como atuar na redução de danos e complicações da droga ao organismo.

 

Referências

[1] Luscher, C. “Cocaine-Evoked Synaptic Plasticity of Excitatory Transmission in the Ventral Tegmental Area.” Cold Spring Harbor Perspectives in Medicine, vol. 3, no. 5, 1 May 2013, pp. a012013–a012013, https://doi.org/10.1101/cshperspect.a012013. Acesso em 7 Ago. 2023.

[2] II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LENAD) – 2012. Ronaldo Laranjeira (Supervisão) [et al.], São Paulo: Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas de Álcool e Outras Drogas (INPAD), UNIFESP. 2014. Acesso em 7 Ago. 2023.

[3] Havlicek, David F., et al. “Cocaine Vaccine DAd5GNE Protects against Moderate Daily and High-Dose “Binge” Cocaine Use.” PLOS ONE, vol. 15, no. 11, 30 Nov. 2020, p. e0239780, https://doi.org/10.1371/journal.pone.0239780. Acesso em 7 Ago. 2023.

[4] Maoz, Anat, et al. “Adenovirus Capsid-Based Anti-Cocaine Vaccine Prevents Cocaine from Binding to the Nonhuman Primate CNS Dopamine Transporter.” Neuropsychopharmacology, vol. 38, no. 11, 10 May 2013, pp. 2170–2178, https://doi.org/10.1038/npp.2013.114. Acesso em 7 Ago. 2023.

[5] Augusto, Paulo Sérgio, et al. “The GNE-KLH Anti-Cocaine Vaccine Protects Dams and Offspring from Cocaine-Induced Effects during the Prenatal and Lactating Periods.” Molecular Psychiatry, vol. 26, no. 12, 1 Dec. 2021, pp. 7784–7791, www.nature.com/articles/s41380-021-01210-1, https://doi.org/10.1038/s41380-021-01210-1. Acesso em 7 Ago. 2023.

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