A ciência da irracionalidade

Todos os dias nos deparamos com decisões que exigem da nossa racionalidade: estudar ao invés de procrastinar assistindo uma série; comer vegetais e frutas ao invés de pedir um delivery no fast food; reservar parte da renda para emergências ao invés de gastar com compras por impulso. Você sabe o que deve fazer, mas não faz. O que a ciência tem a dizer sobre as armadilhas que o nosso cérebro prepara para fugir do que é racional?

 

Logo no ensino fundamental, quando iniciamos os estudos sobre taxonomia dos seres vivos, nos deparamos com uma informação que pode causar estranhamento: somos animais. As semelhanças não negam: mesmo ciclo vital de nascimento, crescimento, reprodução e morte, pluricelularidade, heterotrofia, capacidade de responder e transformar o ambiente. De fato, não existiria outra classificação para nos ser oferecida. 

 

Aceitas as semelhanças, as diferenças começam a se destacar: “Estamos no mesmo grupo de esponjas, planárias, moscas e camundongos?”. Logo em seguida, aprendemos como nos apresentar sem nos comprometer com a biologia: somos animais, sim, mas racionais. Usamos o argumento da racionalidade para orgulhosamente fazer jus aos 3% que diferencia o DNA humano do DNA de camundongos. Podemos até ser parecidos com nossos amigos roedores, mas temos uma capacidade inigualável de transformação da natureza, controlamos os nossos instintos, modulamos o nosso comportamento, temos a capacidade de utilizar a experiência de terceiros para tomar decisões, refletimos e tomamos as decisões sempre muito bem calculadas - pelo menos em tese.

 

Apesar de bradarmos nossa racionalidade por aí, nossas decisões irracionais nos perseguem no dia a dia. Se sabemos o que é o certo, o que deve ou não ser feito, por que deliberadamente escolhemos não fazer? Por que deixamos para estudar para a prova na véspera? Por que apostamos em placares de jogos de futebol? Por que nos viciamos em substâncias de abuso?

 

Figura 1. Ilustração representativa do processo de racionalização

retina_1708x683_0929_Cognitive_Bias_Lina_Newsletter___blog-45cb63f5a0d453997a53ad140fd19658.png

Fonte: Toptal - Designers

#PraCegoVer: Ilustração em tons de azul e verde com figuras geométricas associadas por um emaranhado de linhas que se encontra na silhueta do cérebro de uma pessoa.

 

 

  1. Teoria da Decisão

A Teoria da Decisão é uma expansão para os ramos da psicologia, economia, medicina, sociologia e outras áreas de um tópico da matemática aplicada chamado de Teoria dos Jogos. Na Teoria da Decisão há dois modelos principais:

 

  • O primeiro modelo, chamado de Teoria da Decisão Normativa, é baseado no pressuposto de que, em certa instância, as decisões podem ser otimizadas pela análise probabilística de risco e retorno que o ser humano possui a partir de dados da experiência individual e do conhecimento coletivo. 

 

  • O segundo modelo, chamado de Teoria da Decisão Positiva, é baseado no pressuposto de que as decisões são tomadas com base em um sistema de regras individual e/ou coletivo que pode ou sobrepor a uma análise probabilística da relação de risco e retorno para um evento.

 

O primeiro modelo foi bem aceito como direcionador da Teoria da Decisão até a metade do século XX, quando os pesquisadores Daniel Kahneman e Amos Tversky, psicólogos e economistas israelenses, objetivaram explicar o porquê nós, seres racionais, continuávamos optando por comportamentos reconhecidamente errôneos repetidas vezes ao longo das nossas vidas, se o modelo teórico na época afirmava que processo de decisão humana é baseado em análises acuradas de risco-benefício.

 

A obra dos dois psicólogos embasou a ciência comportamental o bastante para render-lhes o prêmio Nobel de Economia, já que deram o pontapé inicial para o desenvolvimento da Economia Comportamental. Entre os vários atalhos cognitivos que Daniel Kahneman e Amos Tversky discutiram em suas obras, destaco três padrões de irracionalidade estudados por essa nova linha da Teoria da Decisão.

 

 

2. O ser humano não é um bom estimador de probabilidades

Os achados de Daniel Kahneman e Amos Tversky sugerem que, ao contrário do que o nosso ego hominídeo gosta de acreditar, somos extremamente irracionais no sentido literal da palavra. Essa conclusão parte de que, na prática, estamos mais distantes do que próximos do modelo de “tomador de decisão ideal” estabelecido pela Teoria da Decisão Normativa. Isso se dá por um fato muito simples:  apesar de conseguirmos estabelecer relações de análise de risco e benefício, somos muito ineficientes em estimar as probabilidades de ocorrência dos eventos. 

Os primeiros estudos de Daniel Kahneman e Amos Tversky tiveram justamente esse primeiro objetivo de estimar a acurácia da estimativa de probabilidades dos indivíduos da amostra. Os resultados foram publicados no artigo e livro “Judgment under Uncertainty: heuristics and biases”, em 1972. Foi percebido o que posteriormente embasaria o modelo da Teoria da Decisão Positiva: grande parte das decisões humanas são tomadas com base em regras, os chamados “atalhos cognitivos”, que simplificam a análise do cenário analisado. Apesar desse método ser útil para a tomada rápida de decisões, muitas dessas regras são baseadas em crenças construídas a respeito de fatos e/ou processos que não são conhecidos com certeza. Em outras palavras, as regras que direcionam o processo de decisão partem de dados incertos.

O experimento que permitiu a avaliação desse aspecto foi realizado da seguinte forma: 

 

[O experimento] envolve loteria simples, na qual os indivíduos fazem escolhas entre duas alternativas representadas por L= (x; p), onde x é o valor do prêmio, p é a probabilidade de ganhar e (1-p) a probabilidade de nada ganhar. Num experimento deste tipo, 95 indivíduos escolhiam primeiro entre L1=(4.000; 0,20) ou L2=(3000; 0,25) e depois entre L3=(4.000; 0,80) ou L4=(3.000; 1). [Os autores] relataram que 65% das pessoas escolheram a alternativa L1 na primeira loteria, mas na segunda situação, 80% optaram pela L4 (TVERSKY & KAHNEMAN, 1983, p. 295) 

 

O que chama a atenção nesse resultado é que a maior parte das pessoas escolheu a combinação L1, e não a L2, que deveria ser o raciocínio otimizado, considerando a premissa da Teoria de Decisão Normativa de que a probabilidade de ocorrência de um desfecho positivo é o principal fator para a tomada de decisão humana. 

 

3. Tendemos a tratar como mais provável o que é mais recente, recorrente ou afetivo em nossa memória

Além da nossa baixa habilidade em estimar eventos mais prováveis, Daniel Kahneman e Amos Tversky identificaram que um dos vieses cognitivos mais cometidos no processo decisório é o viés de disponibilidade. Nesse caso, o nosso “atalho cognitivo” é tratar como mais frequente o evento do qual nos lembramos com mais facilidade. O experimento no qual esse padrão de irracionalidade foi identificado ocorreu da seguinte forma:

Foram dados sessenta segundos a estudantes da University British Columbia (UBC) para listar palavras em inglês com sete letras sendo que receberam a instrução de listar palavras cuja sexta letra fosse “n” e palavras que terminassem em “ing”. Como resultado, os estudantes listaram muito mais palavras terminando com “(_ing)” do que com “(_n_)” (médias de 6,4 e 2,9, respectivamente) (TVERSKY & KAHNEMAN, 1983, p. 295).

 

O que chama a atenção nesse resultado é que as palavras com a conformação “(_ing)” são um subgrupo não idêntico das palavras com a conformação “(_n_)” o que significa que, necessariamente, as palavras de conformação “(_n_)” existem em maior número em comparação às palavras com a conformação “(_ing)”. Contudo, segundo os autores, há uma tendência em recuperarmos os termos com  “(_ing)” com mais facilidade porque, em geral, são termos que descrevem ações em curso, utilizados várias vezes ao longo do dia, equivalente ao nosso gerúndio no português. Se esse mesmo experimento fosse realizado no Brasil, seria solicitado que fossem escritas palavras de sete letras cuja quinta letra fosse “n” e palavras de sete letras que terminassem em “-ndo”. Apesar do primeiro grupo de palavras ser maior, nos lembramos com mais facilidade dos verbos no gerúndio: andando, comendo, nadando… 

O viés de disponibilidade pode ser influenciado tanto pela recorrência do evento, a exemplo do experimento com a lista de palavras, como também pela intensidade ou componente afetivo associado ao evento. Um exemplo dessa segunda situação é que, apesar de menos frequentes, costumamos lembrar com mais detalhes de acidentes de avião do que de acidentes de carro, uma vez que, quando ocorrem, os acidentes de avião tendem a ser mais graves.

Em outras palavras, seja pelo componente afetivo, seja pela recorrência, tendemos a dar mais relevância às informações que lembramos com mais facilidade, mesmo que elas sejam menos frequentes. Em algumas situações esse atalho cognitivo pode ser útil, porém nem sempre está de acordo com a decisão de maior probabilidade de ocorrência do evento com maior risco benefício. Afinal, muitas pessoas preferem viajar longas distâncias em carros do que em aviões, ainda que, estatisticamente, os aviões sejam muito mais seguros.

 

4.Tendemos a rejeitar informações que contradizem a nossa hipótese inicial

Figura 2. Ilusão de Muller-Lyer

illustration.png

Fonte: Shutterstock.com

#PraCegoVer: São desenhadas duas linhas do mesmo comprimento. Uma delas possui flechas côncavas e a outra, flechas convexas. Apesar de terem o mesmo tamanho, a seta com flechas côncavas parece ser menor, por ilusão de ótica.

 

Um outro atalho cognitivo que foi avaliado nas publicações de Daniel Kahneman e Amos Tversky foi o viés de representatividade. Em suma, esse viés descreve que, uma vez que uma hipótese sobre um cenário é formulada, o ser humano tende a ser resistente a aceitar informações que a rejeitem, mesmo que, após esse processo, a hipótese inicial se torne menos provável. O experimento que avaliou esse atalho cognitivo, foi feito da seguinte forma:

 

Linda tem 31 anos, é solteira, sincera e muito brilhante. Ela é formada em filosofia. Quando era estudante, preocupava-se com temas como discriminação e justiça social, e também participou de manifestações anti-nucleares: 

a. Linda é professora do ensino fundamental.

b. Linda trabalha numa livraria e faz yoga. 

c. Linda é ativista do movimento feminista. 

d. Linda trabalha como assistente social. 

e. Linda é um membro da Liga das mulheres eleitoras. 

f. Linda é uma caixa de banco.

g. Linda é uma corretora de seguros.

h. Linda é uma caixa de banco e é ativista do movimento feminista. 

 

No experimento, 80 a 90% dos participantes escolheram a alternativa h) dentre as oito alternativas apresentadas envolvendo diferentes profissões e atividades para Linda (TVERSKY & KAHNEMAN, 1983, p. 295). 

 

Esse resultado vai de encontro ao esperado por agentes com boa noção de probabilidade, uma vez que uma das propriedades mais elementares desse ramo da matemática é que, se dois eventos são independentes entre si e não-nulos, a probabilidade de ocorrência da interseção é necessariamente menor do que a probabilidade dos eventos isolados. Em outras palavras, a probabilidade de Linda ser somente caixa do banco é maior do que a probabilidade que ela seja caixa do banco e ativista do movimento feminista. 

Talvez esta é uma das heurísticas que tem o maior potencial de propiciar a tomada equivocada de decisões, uma vez que apresenta o mesmo mecanismo do especialista que superestima a sua habilidade ou seu conhecimento sobre um tema pelo número de vezes em que já presenciou a ocorrência de um evento. Nesses casos em que uma hipótese inicial é muitas vezes formulada, mas há alguns elementos que desviam do padrão exato de reconhecimento do evento, há uma tendência de ignorar as novas informações adquiridas.

 

5. Conclusão

Os modelos baseados na Teoria da Decisão Positiva destacaram que, mesmo diante de tantas transformações e pensamentos complexos que somos capazes de estabelecer, o aproveitamento é baixo o suficiente para desconsiderarmos que o processo de decisão humano é regido principalmente pela otimização probabilística. Certamente há muitos outros vieses cognitivos que ainda não receberam nomes, mas que determinam atalhos cerebrais que tornam a nossa vida menos dispendiosa energeticamente e que nos fazem recair em decisões equivocadas com frequência. 

 

Referências:

SCBICCA, Adriana. A contribuição de Daniel Kahneman e Amos Tversky para o estudo das decisões econômicas. Departamento de Economia (UFPR), 2019

KAHNEMAN, Daniel; TVERSKY, Amos. “Prospect theory: an analysis of decision under risk”. Econometrica, 47 (2), mar., p. 263-291

0 Comentários

Deixe um comentário