Apostas, recompensas e o confronto com a aleatoriedade

O vício em apostas enche cassinos e marca presença em todos os eventos esportivos que se possa nomear, adentrando ainda nas mecânicas de jogos eletrônicos. Em certo grau, todos recorremos a apostas diante de ocorrências onde os resultados fogem do nosso controle e, consequentemente, nos sentimos recompensados quando nossos palpites provam-se verdadeiros. Sendo assim, vale a pena conhecer quais os mecanismos que conduzem a um quadro patológico, e alguns dos fenômenos que entram em cena quando somos forçados a encarar o aleatório.

 

Figura 01: Anúncio do National Council on Problem Gambling

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Fonte: BBC

#ParaCegoVer: A figura traz uma mulher de vestido preto cruzando um anúncio colocado em uma rua. No anúncio anti apostas, há dois meninos vestidos com uniformes esportivos, sentados sobre bolas de futebol em um gramado, e um balão de fala vindo do garoto à direita com a frase “I hope Germany wins. My dad bet all my savings on them.”

No ano do fatídico 7x1, o Brasil não foi o único país a lamentar o sucesso da Alemanha na vigésima edição da Copa do Mundo. Em Singapura, uma campanha anti-apostas do National Council on Problem Gambling teve efeito oposto quando a seleção alemã, confiada pelo fictício "pai do Andy", se confirmou campeã mundial [1]. O anúncio que deveria servir de alerta quanto aos prejuízos do vício em apostas, por destino, fez o risco parecer valer cada centavo, inundando a internet com piadas. No fim, foi o governo de Singapura quem apostou na seleção errada.

Ainda que tenha dado errado, a tentativa do governo de Singapura de controlar os apostadores refletiu um problema que já vinha sendo melhor percebido na área médica. Apenas um ano antes, quando o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), da American Psychiatric Association, foi atualizado à sua 5º edição, o vício em apostas adquiriu uma nova dimensão clínica. Isso porque, até aquele momento, o jogo patológico era classificado como um dos “transtornos de controle de impulsos não classificados em outro local”, parte de uma classe de transtornos psiquiátricos relacionados a problemas de regulação comportamental e inabilidade de resistir a desejos, tentações e impulsos. Contudo, com o DSM-5, o fenômeno passa a ser descrito como um transtorno aditivo, uma mudança sustentada por evidências crescentes de que o comportamento do apostador ativa o sistema de recompensas do cérebro, de forma bastante semelhante ao abuso de drogas [2].

 

Sistema de Recompensas do Cérebro

O sistema de recompensas do cérebro foi descoberto na década de 1950, por James Olds e Peter Milner. Eles perceberam que ratos que haviam recebido estímulos elétricos continuamente retornavam à mesma área do laboratório para recebê-lo novamente e, em sequência, realizariam pequenas tarefas — como pressionar alavancas — em busca daquele estímulo cerebral [3]. Tal experimento serviu de base para investigações que possibilitaram a identificação de um circuito neurológico, cuja atuação acontece em resposta a sensações de prazer e satisfação: a via mesolímbica.

Ao experimentarmos algo prazeroso, desde uma sobremesa a uma vitória no bolão da Copa do Mundo, a área tegmental ventral (ATV) do cérebro produz dopamina, um neurotransmissor crucial para o sistema de recompensas. Essa substância será direcionada a outras regiões cerebrais, conectando-se às amígdalas cerebelosas, ao hipocampo, ao núcleo accumbens e ao córtex pré-frontal. Dessa forma, os componentes da via mesolímbica participam de mecanismos relacionados a emoções, memória, motricidade e atenção que, em conjunto, atuam para validar o estímulo que desencadeou a resposta — e incentivar a sua repetição [4].

 

Figura 02: Experimento de Olds e Milner

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Fonte: Universidade de Sevilha

#ParaCegoVer: A figura é uma foto em preto e branco que mostra um rato em uma gaiola pressionando uma alavanca para receber um impulso de estimulação elétrica.

 

Contudo, em se tratando do abuso de drogas, conforme persiste o uso de substâncias, maior é a adaptação do cérebro à intensa oferta de dopamina, que passa a produzi-la em menor quantidade e torna-se menos responsivo aos seus efeitos. Com isso, doses cada vez maiores são demandadas, resistir à abstinência torna-se mais difícil, e a influência do córtex pré-frontal sobre o controle de impulsos é enfraquecida. Temos em mãos, portanto, um cérebro viciado [4].

Nesse sentido, diferentes estímulos ativam a via de recompensas em níveis distintos e, consequentemente, variam em seu potencial de causar vícios. Para os apostadores, no entanto, o problema vai além do componente neurológico, dialogando ainda com a dificuldade humana em encarar a aleatoriedade.

Vieses Cognitivos

Quando o assunto é aposta, relatos dos jogadores frequentemente indicam que a insistência na perda é sustentada pela crença cega de que uma reviravolta favorável está prestes a acontecer. Percepções distorcidas quanto a capacidade de controlar ou prever os resultados de um jogo são as formas mais comuns de vieses cognitivos – padrões no raciocínio que contradizem os princípios da lógica e da probabilidade, afetando a tomada de decisão – que reforçam o hábito de apostar [5]. Nessa perspectiva, duas principais tendências podem ser observadas: a falácia do apostador e a falácia da mão-quente.

falácia do apostador é a ideia de que uma sequência de resultados iguais aumentam as chances de se obter, em seguida, uma ocorrência contrária. Descrições empíricas desse fenômeno foram observadas em experimentos onde os sujeitos eram solicitados a prever os resultados dentre uma série de alternativas binárias e aleatórias. Inicialmente, a tendência apontava para a recência positiva: prever a mesma ocorrência anterior. Contudo, conforme somavam-se resultados iguais, o comportamento aproximou-se do outro extremo do espectro, a recência negativa, delineando os mecanismos da falácia em questão [6].

Certamente, depois de sortear dez vezes ‘coroa’ no lançamento de uma moeda honesta, o próximo resultado será ‘cara’, não é? Não exatamente. Na realidade, sendo os lançamentos completamente independentes entre si, a probabilidade de sorteio se mantém 1/2, não importa qual seja a sequência anterior — afinal de contas, moedas não têm memória. Em 18 de agosto de 1913, contudo, apostadores que acompanhavam um jogo de roleta no Cassino de Monte-Carlo caíram nesse equívoco, e perderam fortunas torcendo pelo vermelho, depois que a bola caiu em uma casa preta 26 vezes — um acontecimento que, à primeira vista, parece improvável, mas que mantém as mesmas chances de uma sequência diferente acontecer. Esse evento incomum conferiu à falácia do apostador o apelido de “falácia de Monte Carlo” [7].

 

Figura 03: Roleta de Monte Carlo

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Fonte: Lévy et Neurdein Réunis

#ParaCegoVer: A figura é uma ilustração em cores de uma roleta de cassino, com numerações e uma legenda para explicar as regras do jogo. No topo, aparece o título "La Roulette de Monte-Carlo"

 

Já a falácia da mão-quente descreve a percepção de que, dada uma sequência de sucessos, a boa sorte tem uma probabilidade mais alta de se repetir em tentativas posteriores. Pode ser que, após um jogador de futebol marcar dois gols seguidos em uma partida, seus colegas de time sintam-se tentados a passar a bola para ele mais frequentemente, acreditando que outros gols estão por vir. Embora, em uma leve proporção, a euforia da mão-quente possa estimular o desempenho do atleta, o mesmo não pode ser dito em contextos onde não há controle sobre os eventos, como é o caso das apostas. 

Ainda assim, a tentativa de perceber padrões em dados aleatórios é uma forte tendência humana, denunciando nossa limitação quando confrontados com a aleatoriedade. E esse fenômeno não é exclusivo da nossa espécie: em um jogo de azar, macacos são influenciados pelo mesmo viés da mão-quente que humanos, conforme revelou um experimento cujas correlações entre apostas sequenciais foram analisadas. Dado 50% de chance de obter uma recompensa a partir da escolha entre um dos painéis que apareciam no monitor, as decisões dos primatas tendiam a favorecer a opção previamente vitoriosa. Tais resultados, além de curiosos, abrem portas para considerar a presença de um processo evolutivo que estimulou esse instinto, tendo em mente que, na natureza, os recursos raramente se distribuem aleatoriamente [8].

Mas o que isso nos leva a concluir sobre a febre das apostas? 

Em suma, por mais que a ciência aproxime-se de explicar, por meio de mecanismos neurológicos, o que torna tão difícil separar um apostador patológico do seu jogo de azar favorito, a psiquê humana mostra-se tão árdua de desvendar quanto o nosso cérebro. E, ao adentrar no campo da psiquiatria, buscar parâmetros objetivos para mensurar o comportamento humano encontra novas barreiras.

Dessa forma, ao tentar entender o que acomete os apostadores, podemos nos deparar com uma associação de circuitos cerebrais com observações ainda pouco conclusivas. Para além do que foi discutido, o comportamento de loss-chasing – tendência de continuar apostando para recuperar o dinheiro perdido – e o efeito das "quase-perdas" – situações de derrota que são percebidas como quase vitórias, reforçando o comportamento – frequentemente são postos à mesa quando falamos sobre o transtorno do jogo, adicionando novas camadas aos critérios diagnósticos estabelecidos pelo DSM-5. 

E é possível que, até a próxima edição da Copa do Mundo, novas perspectivas ainda sejam lançadas sobre o assunto. Façam suas apostas.

Referências:

  1. Singapore own goal as anti-gambling advert backfires. BBC News, 15 jul. 2014. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/world-asia-28318187>. Acesso em: 12 dez. 2022.
  2. American Psychiatric Association (APA). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5. 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 2014.
  3. OLD, J., MILNER P. Positive reinforcement produced by electrical stimulation of the septal area and other regions of rat brainJournal of Comparative and Physiological Psychology, v. 47, p. 419–427. 1954.
  4. How the Brain Gets Addicted to Gambling. Scientific American, 01 nov. 2013. Disponível em: <https://www.scientificamerican.com/article/how-the-brain-gets-addicted-to-gambling/>. Acesso em: 12 dez. 2022.
  5. TOET, A., KORTELING, JE. Encyclopedia of behavioral neuroscience. 2. ed. 2022
  6. AYTON, P. FISCHER, I. The Hot Hand Fallacy and the Gambler’s Fallacy: Two faces of Subjective Randomness? Memory and Cognition, v. 32, p. 1369-1378. 2004.
  7. Why we gamble like monkeys. BBC Future, 27 jan. 2015. Disponível em: <https://www.bbc.com/future/article/20150127-why-we-gamble-like-monkeys#:~:text=The%20monkey's%20choices%20must%20be,they%20show%20the%20same%20bias.> Acesso em: 12 dez. 2022.
  8. BLANCHARD, T. C., WILKE, A., HAYDEN, B. Y. Hot-hand bias in rhesus monkeys. Journal of Experimental Psychology: Animal Learning and Cognition, v. 40, p. 280–286. 2014.

1 Comentários

Rebeca Borges

Massa demais! Super atual.

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