É possível ter uma Psiquiatria baseada em evidências?

A mente humana muitas vezes é tida como algo misterioso, sendo inferido que a Psiquiatria é um território ainda pouco explorado pela ciência, portanto, de difícil aplicabilidade das evidências científicas. Entretanto, o processo decisório fundamentado no raciocínio da Medicina Baseada em Evidências pode ser um farol para o cuidado médico ético e compromissado com a ciência em qualquer especialidade.

 

O conceito moderno de Medicina Baseada em Evidências (MBE) surgiu em 1992, no Canadá, no Departamento de Epidemiologia Clínica e Bioestatística da Universidade McMaster (GUYATT et al., 2001). Por sua vez, a primeira menção a uma “Psiquiatria Baseada em Evidências” ocorre apenas em 1995 por Elliot Goldner e Dan Bilsker, propondo a aplicação de um novo paradigma ao campo da Psiquiatria, em contraposição ao suposto “Paradigma Tradicional” até então consolidado na especialidade. Desde então, surgiram outros trabalhos nesta mesma direção (GRAY & PINSON et al., 2003). Para a clínica psiquiátrica, então, qual seria a flagrante oposição entre o “tradicional” e o “novo” alardeada pelos pesquisadores?

 A decisão médica seja ela no âmbito psiquiátrico ou não, se baseia em um complexo processo de identificação de padrões de sinais e sintomas que são condicionados ao conhecimento prévio médico. Naturalmente, esse processo de raciocínio e conduta médica estão sempre susceptíveis a uma variedade de vieses, os quais são mitigados ao utilizar ferramentas diagnósticas ou uso variáveis de desfecho duro – um exame laboratorial, por exemplo. No contexto da Psiquiatria, o processo decisório pode ser ainda mais complexo, já que o profissional lida com processos fisiopatológicos  que podem ser irreversíveis ou pouco conhecidos. Consequentemente, a observação clínica das doenças e a percepção subjetiva do paciente são os recursos disponíveis, ainda que sejam suscetíveis a informações conflitantes e/ou incompletas, adicionando mais uma camada de complexidade diagnóstica e terapêutica (ZARIN & EARLS et al., 1993).

O paradigma tradicional fundamentado na experiência clínica, na observação assistemática e no senso comum, deve ser superado pelo modelo que orienta a prática clínica pela avaliação crítica e sistemática das evidências. Portanto, o esforço para a prática de uma PBE perpassa, sobretudo, pela consciência crítica das evidências disponíveis e dos vises clínicos.

Entretanto, devido a diferenciais encontrados na Psiquiatria, a aplicabilidade do exercício da MBE é questionada por alguns autores, sobretudo pela imprecisão diagnóstica. O argumento elaborado por García-Gutiérrez et. al. (2020) aponta que a maioria das evidências na Psiquiatria partem do pressuposto de que há uma interposição da sintomatologia das doenças psiquiátricas, o que seria divergente do que é vivenciado na prática médica. No mesmo sentido, é inferido por Gupta (2007), supondo que as comorbidades psiquiátricas dificilmente são consideradas nos estudos experimentais, o que pode fragilizar a aplicabilidade da evidência.

Ambos argumentos apresentados são teoricamente válidos, mas, na prática da MBE, ambos são naturalmente compreendidos como desafios comuns a todas as especialidades médicas. Um dos princípios fundamentais da prática da MBE é a análise da complacência da evidência científica, que significa avaliar e decidir se a evidência científica de interesse é passível de ser aplicada no contexto da sua prática clínica, seja de forma individualizada ou não (CORREIA, 2012). 

O problema da acurácia diagnóstica – capacidade de diagnosticar uma condição médica quando ela realmente existe, refere-se à ausência de marcadores biológicos para diagnóstico psiquiátrico. O mesmo impasse existe também em outras áreas médicas, e a solução frequentemente adotada para a deficiência na sensibilidade dos procedimentos diagnósticos é utilizar ferramentas que estimem o sinal/sintoma clínico, ou seja, utilizar desfechos substitutos. Atualmente já existem modos de estimar de forma objetiva, aspectos da subjetividade das doenças mentais, como por exemplo com a aplicação de baterias de testes da neuropsicologia e da psicometria (REPPOLD et. al., 2015). 

O campo da Neuropsicologia estuda a relação do funcionamento cerebral e suas conexões com o comportamento, focando em compreender as operações mentais envolvidas em determinadas tarefas e sua relação com o funcionamento neurológico (REPPOLD et. al., 2015). Já a psicometria, provê a base matemática para a avaliação psicológica (VITORATOU, 2017), uma vez que não podemos medir diretamente as percepções, emoções e atitudes, é preciso utilizar padrões de medidas indiretas, como questionários – cuja eficácia é validada em estudos específicos. Dessa forma, a neuropsicologia, aliada à abordagem psicométrica, podem contribuir para a compreensão e diagnóstico dos processos cognitivos.

Com base na síntese das críticas e limitações do uso de evidências científicas na prática médica, o problema em questão orbita sobre uma queixa básica, que seria: é possível praticar a psiquiatria de forma mais acurada e existência de testes diagnósticos? O questionamento embora pertinente, reflete uma valoração indevida aos testes diagnósticos, especialmente os laboratoriais, os atribuindo uma capacidade perfeita de predizer condições do paciente. Ainda assim, a maioria dos testes diagnósticos são desfechos substitutos (Correia, 2022), portanto ainda devem ser utilizados e seus valores interpretados com criticidade na prática clínica.

Nesse sentido, o consenso da deontologia médica materializado no Código de Ética Médica (CFM, 2018) pode ser o referencial para o entendimento do que seria uma PBE, pela prerrogativa que uma boa medicina perpassa em ter compromisso ético e científico. Logo, o uso da evidência deve fazer parte do fazer o médico e não o condicioná-lo. Assim, praticar a MBE medicina baseada em evidências diz respeito em fazer uso crítico, compromissado com a ética, das melhores evidências científicas do que possuir evidência científica para todas as manifestações clínicas possíveis do paciente na clínica psiquiátrica (SHIRARI, 2008).

O uso evidência, assim, não deve ser um condicionante ditatorial, mas uma ferramenta essencial para diagnóstico e conduta terapêutica (Correia, 2021). Nesse contexto, o ensino médico baseado em evidências pode ser um caminho honesto e factível, ao invés de almejar uma abundância de estudos que cubra todas as lacunas. A adoção da MBE pela especialidade da Psiquiatria pressupõe que o profissional tenha adquirido habilidades de como escolher a melhor evidência, como analisa-la criticamente e como usa-la na sua prática médica. 

 

Referências

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Código de ética médica. Brasília, DF: CFM, 2018.

CORREIA, Luís Cláudio Lemos. INCERTEZA, RACIONALIDADE E EVIDÊNCIAS. In: SANTOS, Alethele de Oliveira; LOPES, Luciana Tolêdo. COVID 19 - Planejamento e Gestão. 2. ed. Brasília: Conass, 2021. Cap. 1. p. 12-26.

DAVIDOFF, Frank et al. Evidence based medicine. Bmj, v. 310, n. 6987, p. 1085-1086, 1995. 

DEL MAR, Chris; GLASZIOU, Paul; MAYER, Dan. Teaching evidence based medicine. Bmj, v. 329, n. 7473, p. 989-990, 2004.

ELLIOT, M. Goldner; BILSKER, Dan. Evidence-based psychiatry. The Canadian Journal of Psychiatry, v. 40, n. 2, p. 97-101, 1995.

GARCIA-GUTIÉRREZ, Maria Salud. NAVARRETE, Francisco. SALA, Francisco. GASPARYAN, Ani. AUSTRICH-OLIVARES, Amaya. MANZANARES, Jorge. Biomarkers in Psychiatry: concept, definition, types and relevance to the clinical reality. Frontiers in Psychiatry, 2020. Sec. Molecular Psychiatry. DOI: 10.3389/fpsyt.2020.00432

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GRAY, Gregory E.; PINSON, Letitia A. Evidence-based medicine and psychiatric practice. Psychiatric Quarterly, v. 74, n. 4, p. 387-399, 2003.

GUPTA, Mona. Does evidence-based medicine apply to psychiatry? Theoretical Medicine and Bioethics. Springer, 2007. Vol. 28, pp. 103-120. DOI 10.1007/s11017-007-9029-x

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SRIHARI, Vinod. Evidence-Based Medicine in the Education of Psychiatrists. Academic Psychiatry, 2008. Vol. 32, pp. 463-469. 

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ZARIN, Deborah A; EARLS, Felton. Diagnostic decision making in psychiatry. The American journal of psychiatry, 1993.

 

Autores

Gustavo Santos Araújo - https://orcid.org/0000-0002-7815-2800  

E-mail: gustavoarjo@outlook.com

Faculdade de Medicina da Bahia, Universidade Federal da Bahia (Salvador). Bahia, Brasil;

Centro de Estudos de Transtornos de Humor e Ansiedade (CETHA), Complexo Hospitalar Universitário Professor Edgard Santos, UFBA, Salvador, BA, Brasil.

 

Valéria Couto Queiroz de Almeida - https://orcid.org/0000-0002-3348-5206

E-mail: valeria.almeida@ufba.br

Faculdade de Medicina da Bahia, Universidade Federal da Bahia (Salvador). Bahia, Brasil;

 

Rayan Caetano Rybka - https://orcid.org/0009-0002-1260-7670

E-mail: rayanrybka@hotmail.com

Faculdade de Medicina da Bahia, Universidade Federal da Bahia (Salvador). Bahia, Brasil;

 

Henrique Manoel Simão de Oliveira - https://orcid.org/0009-0006-5097-6302

E-mail: henriqueoliveira@ufba.br

Faculdade de Medicina da Bahia, Universidade Federal da Bahia (Salvador). Bahia, Brasil;

1 Comentários

Murilo Carneiro

Muito bom texto! A psiquiatra tem suas especificidades, mas devemos sempre nos guiar pelas evidências científicas.

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