Eletroconvulsoterapia: dos "porões de manicômios” para alternativa terapêutica

Introdução

Anos atrás, no começo da faculdade de medicina, recordo de ter conversado com um veterano e visto uma pequena apresentação sobre o livro e documentário “Holocauso brasileiro”, que retratava a condição de pacientes psiquiátricos internados no hospital de Barbacena. Chamou minha atenção, na época, o comentário sobre uma das intervenções adotadas à época, o “eletrochoque”, que consistia justamente no emprego de descargas elétricas como forma de tratamento para  alguns quadros psiquiátricos, mas que por vezes era projetada em lógica punitivista. Já havia ouvido falar pois classicamente em filmes que retratam antigos manicômios, tem-se sempre uma cena de uma dessas sessões, geralmente bastante agressivas visualmente.

 

Imagem 1: antiga sessão de “eletrochoque”

image.png

#Pracegover: imagem antiga em preto e branco. Ao centro exite um paciente deitado numa maca com espécie de tira envolta na cabeça, de onde saem fios. O paciente se encontra com 4 homens segurando seus membros e um 5º segurando a tira que lhe envolve a cabeça. Ao lado da maca está um equipamento com botões, sendo controlado por um sexto homem.

Acontece que um tempo depois, descobri, para meu estranhamento até então, que ainda se fazia “tratamentos com eletrochoque” no Brasil e que essa terapia estava disponível através do SUS. Naquela época, isso  soou  um tanto anacrônico para mim, dada a associação entre essa forma de tratamento e os antigos manicômios. No entanto, levantando na literatura médica, a chamada eletroconvulsoterapia (ECT), foi perceptível que não se trata apenas de um campo de pesquisa em expansão, como também tem uma série de evidências, além de já ser empregada na prática com resultados nítidos e benéficos, sendo uma alternativa interessante para pacientes específicos em determinados quadros psiquiátricos. Constatando, assim, que a terapia atual, nada tem a ver com a ideia antiga de “eletrochoque”.

Histórico

O início do ECT vem da observação, nos anos 1930, de que pacientes esquizofrênicos que passavam por convulsões apresentavam melhoras em seus sintomas. Anos antes, havia ainda a ideia de que uma doença poderia ser curada por outra. Ademais, relatos de histopatologia do período, ainda, afirmavam que cérebros de pacientes esquizofrênicos, apresentavam redução de células gliais, enquanto que em pacientes com epilepsia, observava-se que células da glia ocupavam espaços deixados por neurônios perdidos. Além disso, à época, acrescentava-se relatos de baixa incidência de epilepsia em pacientes com esquizofrenia. Tais elementos lastrearam, naquele contexto, a ideia de que esquizofrenia e epilepsia não poderiam ocorrer num mesmo indivíduo. Desse modo, elaborou-se a hipótese de que induzindo crises convulsivas em pacientes esquizofrênicos, seria possível reduzir seus sintomas psicóticos. Dessa forma, iniciaram a utilização de drogas, como o metrazol, para induzir convulsões . Essa técnica foi usada durante alguns anos, até que, na Itália, na mesma década, passaram a utilizar uma nova forma de induzir convulsões: a eletricidade.

No entanto, no período entre a na primeira metade do século passado e início da segunda metade, os procedimentos eram muito mais agressivos, visto que não havia aplicação de intervenções anestésicas ou relaxantes musculares. Além disso, as correntes elétricas empregadas eram maiores e sem um controle mais fino, levando os pacientes a vivenciarem com frequência os efeitos colaterais dessa intervenção, como as fraturas de ossos.

Com o tempo, o desenvolvimento de terapêuticas medicamentosas e a influência do estigma social, a ECT foi gradativamente tendo seu uso reduzido, sendo até mesmo abolida em várias instituições.

Entretanto, ao longo dos anos 90 e 2000, sua utilização foi aos poucos retornando graças às alterações importantes na sua aplicação, tanto a nível de aparelhos usados, viabilizando maior controle da energia elétrica empregada, como também pela adoção de técnicas de anestesia, evitando sofrimento e incômodo aos pacientes.

O que é a eletroconvulsoterapia?

Primeiramente, precisamos estabelecer que, hoje em dia, de uma forma geral, não se utiliza o termo “eletrochoque”, dado o estigma histórico, que carrega consigo a ideia da utilização que era feita nos antigos hospícios sob uma lógica por muitas vezes punitivista. Desse modo, utilizamos o termo eletroconvulsoterapia ou apenas ECT.

ECT consiste na aplicação de pulsos elétricos, correntes pequenas, por meio de um dispositivo apropriado, provocando pequenas convulsões, por vezes vistas apenas no monitor de eletroencefalograma ou no máximo através de pequenos movimentos. Diante disso, ao longo de sucessivas sessões, pacientes com determinadas condições psiquiátricas tendem a apresentar melhora de seus sintomas.

 

Como ocorre o procedimento?

Diferente do que havia no passado, a intervenção é muito mais controlada e humanizada, seguindo etapas bastante parecidas com outros procedimentos médicos realizados sob anestesia, como as endoscopias.

O paciente passa por uma avaliação prévia, que consiste em análise detalhada com o médico quanto a necessidade e indicação desse procedimento para o quadro que o indivíduo apresenta. Passa, ainda, por avaliação de anestesista e investigação da história clínica para detectar possíveis condições de base que possam predispor efeitos adversos, além da realização de eletrocardiograma e investigação de condições que representem fatores de risco, à exemplo de comorbidades cardiovasculares.

O procedimento em si é acompanhado por médico anestesista e psiquiatra. O paciente por sua vez, recebe monitorização com eletroencefalograma (EEG), oximetria de pulso e tem à disposição uma estrutura para manejo de qualquer intercorrência.

Mecanismo de ação?

Alguns mecanismos são propostos como possíveis justificativas para as ações da ECT do ponto de vista da fisiologia, de modo que são apontados possíveis mecanismos. Como, por exemplo, o aumento da liberação de neurotransmissores como serotonina e norepinefrina. Ou, ainda, ação neuroendócrina, agindo sobre o hipotálamo e a hipófise, aumentando alguns hormônios e endorfinas. Há também possível ação na plasticidade cerebral, revertendo alterações estruturais causadas por depressão a nível de tecido cerebral.

No entanto, o fato é que ainda não sabemos exatamente qual é o mecanismo fisiológico da ação do ECT.

Eficácia

ECT tem sido uma opção terapêutica para algumas condições psiquiátricas, mas seu principal destaque é nos quadros depressivos, sobretudo depressão grave.

Quanto à metodologia, idealmente para avaliar a eficácia deveríamos comparar o ECT com um “placebo”, chamado sham, ou seja, um mecanismo parecido, mas com efeito inerte. No entanto, como os estudos avaliam pacientes depressivos e muitos em estágios graves, seria antiético, uma vez que não podemos deixar estes pacientes sem qualquer tratamento, dado o risco que isso representaria para eles próprios. Desse modo, a maioria dos estudos tem o ECT sendo comparado a medicamentos, como a imipramina.

Nesse contexto, revisões sistemáticas como esta publicada no Lancet em 2003 apontam para maior eficácia de ECT em comparação com farmacoterapia tradicional para determinados pacientes depressivos.

Indicações

As principais indicações são: depressão maior, catatonia maligna e psicose resistente a tratamento farmacológico. Além disso, a ECT tem se mostrado uma boa opção quando se objetiva melhora mais rápida, bem como em paciente que já tentou tratamento medicamentoso, mas apresentou resultados pouco satisfatórios, ou ainda em casos de preferência pessoal a ser definida com seu médico.

O número total de sessões varia, mas giram em torno de em média 2 ou 3 a cada semana ao longo de aproximadamente 4 semanas. 

Efeitos colaterais

Como já foi apresentado, ECT atualmente é uma técnica bastante segura e confortável para os pacientes. Ainda assim, apresenta alguns efeitos colaterais, cujos principais são: perda de memória, geralmente eventos recentes e pontuais, mas que tendem a diminuir ao longo do tratamento; dor de cabeça, facilmente tratada com analgesicos; náuseas; e dores musculares decorrentes das drogas de relaxamento muscular. Portanto, podemos observar que os efeitos colaterais são manejáveis, relativamente brandos e transitórios.

Como é no Brasil

ECT nesse formato moderno, sob uso de anestesia e melhor controle, já é empregada em outros países há algumas décadas, como França, Alemanha, Reino Unido, Itália, EUA, etc. No entanto, no Brasil esse retorno foi relativamente mais recente.

Atualmente temos ECT disponível no SUS, ainda que não com uma grande cobertura, sendo encontrada principalmente em serviços de universidades, a exemplo do Hospital Professor Edgard Santos, da UFBA.Além disso, a ECT pode ser encontrada no setor privado, mas seu custo elevado ainda é uma enorme barreira.

Conclusão

Ainda hoje, a eletroconvulsoterapia  carrega muito da polêmica e estigma histórico do passado. Entretanto, sua aplicação atual se mostra uma boa alternativa para pacientes psiquiátricos, especialmente deprimidos e graves. O recorte do que ocorria no passado não se observa mais nas atuais práticas, como nas  demais áreas e procedimentos médicos, na atualidade a segurança e bem-estar dos pacientes são uma prioridade. Portanto, é necessário superar esses estigmas e avaliar a ECT como ela é hoje e com as evidências que já se tem: uma boa opção terapêutica, desde que para os pacientes certos.

 

 

Referências

  1. HTTPS://WWW.RFI.FR/BR/BRASIL/20190216-TRATAMENTO-COM-ELETROCHOQUE-QUE-PROVOCA-POLEMICA-NO-BRASIL-E-AMPLAMENTE-USADO-NA-FRA. Tratamento com eletrochoque que provoca polêmica no Brasil é usado na Europa. RFI.

  2. KELLNER, Charles . UpToDate. www.uptodate.com. Disponível em: <https://www.uptodate.com/contents/overview-of-electroconvulsive-therapy-ect-for-adults?search=eletroconvulsoterapia&source=search_result&selectedTitle=1~113&usage_type=default&display_rank=1#H3>.

  3. PERIZZOLO, Juliana; PERIZZOLO*, Perizzolo*; SZOBOT, Claudia; et al. Aspectos da prática da eletroconvulsoterapia: uma revisão sistemática. Revista de Psiquiatria, v. 25, n. 2, p. 327–334, 2003. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/rprs/a/Z94LP9jfRJKNbn57JBrxJdc/?format=pdf&lang=pt>.

  4. SALLEH, Mohamed Abou; PAPAKOSTAS, Ioannis; ZERVAS, Ioannis; et al. Eletroconvulsoterapia: critérios e recomendações da Associação Mundial de Psiquiatria. Archives of Clinical Psychiatry (São Paulo), v. 33, p. 262–267, 2006. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/rpc/a/vfXmhbfsnXL8z6vnHfFsrsd/?lang=pt&format=html>.

  5. SILVA, Maura Lima Bezerra e ;  CALDAS, Marcus Tulio. Revisitando a técnica de eletroconvulsoterapia no contexto da reforma psiquiátrica brasileira. Psicologia: ciência e profissão, v. 28, n. 2, p. 344–361, 2008. >.

  6. THE UK ECT REVIEW GROUP. Efficacy and safety of electroconvulsive therapy in depressive disorders: a systematic review and meta-analysis. The Lancet, v. 361, n. 9360, p. 799–808, 2003.

  7. GAZDAG, Gábor ; UNGVARI, Gabor S. Electroconvulsive therapy: 80 years old and still going strong. World Journal of Psychiatry, v. 9, n. 1, p. 1–6, 2019. Disponível em: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6323557/>.

0 Comentários

Deixe um comentário