Vieses Cognitivos e sua Relação com a Prática Clínica
Embora seja crucial compreendermos os erros sistemáticos, frequentemente referidos como vieses, os quais podem significativamente influenciar a qualidade de uma pesquisa, nesse texto abordaremos um outro tipo de vieses - os vieses cognitivos.
Os vieses, também conhecidos como erros sistemáticos, são erros que produzem resultados ou conclusões sistematicamente diferentes da verdade nas pesquisas. Esses erros, diferente dos erros aleatórios, não são obra do acaso e estão diretamente ligados com o delineamento ou com a condução de um estudo [1]. Alguns exemplos de possíveis vieses que podem ocorrer em uma pesquisa são os vieses de seleção, aferição e confusão, todos já abordados anteriormente em um outro texto aqui do blog (colocar link quando blog retornar) [2].
Os vieses cognitivos são padrões sistemáticos de desvios no pensamento que afetam a forma como nós, seres humanos, tomamos decisões. Eles são disposições ou inclinações cognitivas que frequentemente não estão alinhadas com os princípios da lógica, raciocínio probabilístico e plausibilidade. Essas tendências intuitivas e subconscientes podem formar a base do nosso julgamento e da nossa tomada de decisões [3].
No entanto, esses vieses também podem levar a decisões subjetivas e a erros de julgamento, desviando-nos do pensamento lógico e racional e consequentemente impactando na nossa prática clínica [3].
Existem inúmeros tipos de vieses cognitivos, muitos dos quais são abordados pela psicologia. Entretanto, aqui, apresentaremos apenas cinco tipos de vieses cognitivos e como eles podem impactar no exercício médico.
- Viés de Disponibilidade
- Viés de Confirmação
- Viés do Efeito Contrário (Backfire Effect)
- Viés do Desfecho pela Taxa de Base
- Viés de Enquadramento
Viés de Disponibilidade
O viés de disponibilidade ocorre quando tendemos a superestimar os riscos de eventos que estão mais facilmente disponíveis em nossa memória. Nesse sentido, quando algo vem à mente facilmente, temos a tendência de atribuir uma maior importância a essa informação. Por outro lado, se algo é difícil de lembrar, tendemos a atribuir uma menor importância [4].
Em resumo, esse viés se baseia na ideia de que a facilidade com que um evento ou informação específica vem à mente é interpretada como um indicador de sua frequência ou probabilidade de ocorrência.
Na prática clínica, esse viés de disponibilidade pode vir a ocorrer quando o médico é influenciado por eventos recentes, casos dramáticos ou informações que estão mais facilmente acessíveis em sua memória. Assim, isso pode levar a uma superestimação da probabilidade de ocorrência de certas condições ou complicações em seus pacientes [4].
Por exemplo, se um médico recentemente se deparou com um caso grave de uma doença X, o qual teve um desfecho trágico, ele pode ficar mais propenso a diagnosticar erroneamente essa mesma doença X em outros pacientes que possuam sintomas e fatores de risco semelhantes ao do paciente do caso grave [5].
Nesse cenário, o evento recente ficou mais disponível na mente do médico e inconscientemente pode influenciar seu julgamento, levando a uma decisão de despender recursos e solicitar exames que possivelmente possam confirmar sua - errônea - suspeita ou até mesmo iniciar tratamentos desnecessários [5].
Viés de Confirmação (ou tendência de confirmação)
O viés de confirmação refere-se à nossa tendência humana de dar atenção especial às informações que confirmam ou apoiam nossas crenças, hipóteses ou opiniões pré-existentes. Nós naturalmente buscamos, interpretamos e lembramos de forma seletiva as informações que estão alinhadas com as nossas expectativas e tendemos a ignorar ou subestimar aquelas que contradizem ou desafiam o que já temos como muito possivelmente correto [4].
Figura 01:
Fonte: diariodocentrodomundo.com.br
#PraCegoVer Uma estátua grega com uma venda cobrindo o olho esquerdo, enquanto com a mão direita levanta a venda que estava sobre o olho direito.
Trazendo para o contexto da prática clínica, podemos visualizar a ocorrência do viés de confirmação quando o médico tende a interpretar as informações obtidas durante uma consulta de acordo com seu diagnóstico preconcebido já ao iniciá-la, em vez de fazer o contrário, ou seja, interpretar as informações para pensar em possíveis diagnósticos.
Isso pode ocorrer, por exemplo, quando um médico desconfia que um paciente tenha uma infecção e solicita alguns exames. Caso os exames solicitados mostrem um aumento de leucócitos, o médico pode acreditar que aquele paciente, de fato, possua uma infecção, em vez de parar e se perguntar quais outros possíveis achados podem ter causado essa elevação do número de células brancas, podendo, desse modo, deixar passar um possível diagnóstico correto [5].
Compreende-se, assim, que esse viés pode resultar em um diagnóstico errôneo ou pode negligenciar outras informações clínicas relevantes, as quais podem apontar para causas diferentes, além de poder restringir diagnósticos diferenciais.
Viés do Efeito Contrário (Backfire Effect)
O viés do efeito contrário ocorre quando uma pessoa, ao ser confrontada com informações ou evidências que contradizem suas crenças já existentes, tende a fortalecer ainda mais suas crenças errôneas em vez de mudá-las. Esse viés consegue revelar a tendência humana em proteger e reforçar crenças e opiniões pessoais, mesmo quando são inconsistentes com fatos ou evidências objetivas [5].
Quando ocorre um “medical reversal” (verificar se tem texto sobre isso no blog), ou seja, quando uma prática médica amplamente aceita é desacreditada por novas evidências, o viés do efeito contrário pode influenciar a reação de muitos médicos. Eles podem apresentar uma resistência pela aderência da prática tida como mais eficaz, pois aderi-la implica em abandonar aquilo que eles aprenderam e em que eles acreditaram por muito tempo.
Isso pode ser prejudicial para o paciente, uma vez que o paciente merece ser tratado com a melhor evidência possível, levando-se em consideração todo contexto socioeconômico e cultural.
Viés do Desfecho pela Taxa de Base
O viés de desfecho pela taxa de base, na medicina, ocorre quando os médicos ignoram a frequência de uma condição na população em geral ao avaliar um paciente individualmente. Isso, assim como viés de confirmação, pode levar a diagnósticos incorretos e tratamentos desnecessários [5].
Esse viés chama a atenção para a necessidade de considerarmos tanto as informações clínicas do paciente quanto o conhecimento epidemiológico sobre a condição para tomarmos decisões mais precisas.
Nesse sentido, um exemplo de como esse viés pode ocorrer na prática clínica é quando um médico ignora a grande incidência da dengue na região em que atua. Assim, mesmo que um paciente apresente sintomas típicos da dengue, o médico pode descartar essa possibilidade devido à falta de conhecimento sobre a taxa de base da doença na área ou por estar sendo guiado por um viés de confirmação para outro diagnóstico. Isso pode levar a um diagnóstico incorreto, afetando negativamente o tratamento e a recuperação do paciente.
Viés de Enquadramento
Por último, mas não menos importante, resolvemos trazer um viés cognitivo que pode ocorrer tanto com o médico quanto com o paciente.
No viés do enquadramento, a pessoa pode reagir de modo diferente a uma escolha específica dependendo de como a informação é apresentada [5].
“E como isso pode impactar o médico?”
Com objetivo de fazer o médico indicar os seus medicamentos, uma empresa farmacêutica pode se utilizar de diferentes estratégias de apresentação para destacar as possíveis vantagens de um determinado medicamento em relação a outro. Por exemplo, eles podem enfatizar a taxa de cura de 95% do medicamento A e compará-la com a taxa de falha de 2,5% do medicamento B. Essa apresentação pode induzir as pessoas a acreditarem que o medicamento A é significativamente mais eficaz do que o medicamento B [5].
Figura 02:
Fonte: g4educação.com
#PraCegoVer: Uma imagem focada em um boneco de porcelana com diferentes marcações no hemisfério cerebral esquerdo.
Nessa comparação, a empresa está destacando o aspecto positivo do medicamento A (a alta taxa de cura) e o aspecto negativo do medicamento B (a taxa de falha), o que por si só já se mostra uma comparação enviesada e que favorece o medicamento A, desconsiderando outros fatores, como os efeitos colaterais de ambos remédios e/ou outras evidências científicas.
“Certo, LACers, mas como esse viés pode afetar o meu paciente?”
Então, como no viés de enquadramento, a forma como uma informação é apresentada impacta na sua escolha e o paciente pode optar por um plano terapêutico X ou Z, por exemplo, de acordo com a forma como o médico apresenta essas duas opções.
Conclusão
Ao reconhecermos a influência desses vieses cognitivos nas nossas possíveis decisões clínicas, podemos buscar estratégias para minimizá-los e para melhorar a qualidade do cuidado oferecido aos nossos futuros pacientes. Esperamos que a apresentação desses cinco vieses cognitivos tenha ajudado a expor como é importante compreendermos o que são e como eles podem interferir no exercício médico.
Referências:
[1] PORTA, Miguel. A dictionary of epidemiology. Oxford: Oxford University Press, 2014.
[2] Texto do blog que faz referência a vieses (glossário).
[3] KORTELING, J. E Hans.; TOET, Alexander. Cognitive Biases. Reference Module in Neuroscience and Biobehavioral Psychology, 2020.
[4] FRIEDMAN, Hershey H. Cognitive Biases that Interfere with Critical Thinking and Scientific Reasoning: A Course Module. SSRN Electronic Journal, 2017.
[5] O’SULLIVAN, E.; SCHOFIELD, S. Cognitive bias in clinical medicine. Journal of the Royal College of Physicians of Edinburgh, v. 48, n. 3, 2018.
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