Por que o “estudo” da Prevent não tem nada de científico?

Dentre as descobertas dos últimos meses oriundas da investigação do período de pandemia de COVID-19 no Brasil, um novo acontecimento nos salta aos olhos. Das falhas metodológicas às infrações de ética em pesquisa, o que sabemos e o que é possível aprender a partir do “estudo” da Prevent Senior? Hoje, vamos sintetizar o que sabemos até então, refletir sobre o por que não devemos considerar essa empreitada uma pesquisa científica, elencar falhas no que tange ética em condução de estudos e as possíveis consequências que aventuras desta natureza trazem para a imagem da ciência.

 

É apenas mais um dia na imaginária República de Eldorado e, dentre os absurdos que seu chefe raivoso vomita, pratica ou que vem à tona acerca dos que orbitam a sua volta, descobre-se mais uma prática questionável. O que começou como tentativa espúria de estudo com insuficiente metodologia de pesquisa, completamente às avessas do que seria um bom trabalho, caminha para terminar como tragédia ao ignorar preceitos básicos de ética em pesquisa. Diante disso, os fatos recentes apontam que de agora em diante não mais vamos precisar de exemplos estrangeiros nas aulas de ética, podemos abrir mão das exemplificações com campos de concentração ou o caso Tuskegee, pois agora temos nosso próprio desastre em pleno 2021, uma afronta e retrocesso ético 100% “made in brazil”.

 

O que sabemos até aqui?

A operadora de saúde Prevent Senior, voltada para assistência à saúde de pessoas idosas, teria proposto um estudo visando avaliar a eficácia da hidroxicloroquina e azitromicina na redução de internamentos por COVID-19. Assim, foram empregados cerca de 600 pacientes da rede com suspeita de COVID. 

 

Ainda em 2020, é divulgado para alguns representantes da imprensa e chega até alguns pesquisadores uma espécie de preprint com os dados dos pacientes e, ao menos em tese, teríamos mais à frente um trabalho sendo publicado.  No entanto, não foi o que de fato ocorreu, pois a partir desse documento prévio foi observado que a metodologia empregada no estudo tinha falhas severas, que dificultavam, e até inviabilizavam, a capacidade do trabalho de gerar conclusões. Em texto de 2020, o Instituto Questão de Ciência já apontava, de modo bastante didático, as principais deficiências do estudo em questão.

 

Nesse contexto, tal material prévio com resultados antecipados, disponibilizados à imprensa, já permitia perceber claramente a existência de vieses, bem como, conflitos de interesse importantes. Isso porque se tratava de um estudo desenvolvido e financiado pela própria seguradora de saúde em hospitais exclusivos da rede, com atuação de profissionais contratados da própria Prevent Senior. Além disso, podemos destacar, também, a natureza política na insistência em um tratamento sem eficácia e com pouca plausibilidade para intervir positivamente em quadros de COVID.

 

No entanto, os problemas da pesquisa apresentada até  então não se restringiam ao possível choque de interesses e iam além, negligenciando aspectos basais do desenho padrão ouro, para verificar eficácia de intervenções, que é o Ensaio Clínico Randomizado (ECR). Nesse contexto, não houve registro do estudo em plataformas como o clinical trials.gov - que já foram explicadas neste site - nas quais o protocolo é registrado previamente, para garantir que os pesquisadores se manterão fiéis aos passos aos quais se propuseram no projeto da pesquisa. Além disso, pacientes não eram cegados e não havia placebo, ou seja, os que aceitaram utilizar a droga sabiam que a estavam recebendo e aqueles que se recusaram foram alocados no grupo de controle, mas não receberam um placebo (que deveria ser exatamente igual ao medicamento testado, mas sem o efeito farmacológico). Os participantes eram auto selecionados, então não ocorreu nenhuma amostragem ou randomização no processo, que é a característica fundamental de um ECR. Além do mais, membros da própria equipe também não eram cegados. 

 

Por fim, sobre nossa população de estudo, talvez você tenha reparado que me referi mais acima a “pacientes com suspeita de COVID”, pois bem, é isso mesmo, SUSPEITA! Pois não foi realizado teste diagnóstico para confirmação dos quadros antes do início do estudo, ou seja, podem ter sido tratadas pessoas que não estavam doentes. Portanto, uma impossibilidade lógica demonstrar que determinada intervenção é eficaz para certa doença, que sequer estava confirmada na população de estudo. 

 

Recentemente, o tema voltou à pauta quando passou a ser investigado pela CPI da covid. Com isso, semanalmente fomos descobrindo cada vez mais incoerências e absurdos na condução da pesquisa. Isso se dá uma vez que, além da baixa qualidade metodológica do trabalho, foram apontadas incoerências éticas extremamente graves. 

 

Imagem 1: Montagem com manchetes sobre a Prevent Senior

Montagem com manchetes de jornais.png

Fonte:  Própria

 

Por que isso não é pesquisa científica?

Estudos altamente enviesados não nos servem muito porque seus resultados não conseguem ser equivalentes à realidade estudada, ou, como costumamos dizer, trabalhos assim acabam não tendo uma boa validade. Em ciência, tentamos blindar, através do delineamento da pesquisa, o objeto estudado contra a influência do pesquisador ou de seus vieses, bem como de vieses do participante ou da equipe. Isso porque nossa percepção da realidade é altamente incompleta e, por mais bem intencionados que estejamos, podemos distorcer o que observamos e construir uma interpretação fantasiosa diante da realidade que se impõe. A verdade é absoluta, ela sempre existirá independente de a conhecermos ou não, independente de a entendermos ou não, porém nossa percepção de eventos é extremamente limitada. Dessa forma, é justamente aí que o método se faz necessário, porque diminuindo os vieses, desejos e atalhos mentais do pesquisador, viabilizamos conclusões que tendem a se aproximar da verdade.

 

No estudo em questão, a coleta de dados se dá num contexto de pandemia, no qual todos desejavam uma cura para a doença que assolou o mundo. É compreensível que os profissionais de saúde desejem apresentar - até mesmo com boa intenção - uma intervenção que possa curar seu paciente. Nesse sentido, existia também a vontade política para que essas drogas tivessem eficácia, havia uma empresa manejando pesquisa, cuidado em saúde, coleta e análise de dados. Essa mesma empresa que, em caso de resultados positivos, teria no mínimo bons frutos no marketing. Portanto, todos esses fatores inviabilizam a aquisição de resultados robustos a partir desse contexto.

 

Em bioestatística, temos a ideia de Hipótese Nula que, de modo objetivo, diz que, diante de dois grupos comparáveis, a intervenção testada (o novo remédio proposto para a doença) não teria qualquer diferença na redução de mortalidade quando comparada com o placebo. Já a Hipótese Alternativa afirma que haveria diferença na mortalidade daqueles que usaram a intervenção, em comparação com o grupo placebo. O professor Luis Claudio Correia, em um dos princípios da Medicina Baseada em Evidências, lança mão, a partir desta ideia, do “princípio da Hipótese Nula”. Segundo tal princípio, diante de novos possíveis tratamentos para doenças, devemos sempre avaliar sua demonstração antes de adotá-lo na prática. Trata-se do famoso ônus de prova, ou seja, a desvantagem de se provar eficaz é sempre da nova terapia, e, a menos que essa seja comprovada, não devemos utilizá-la. Diferente do que foi também propagado durante a pandemia, em ciência não precisamos comprovar que algo não funciona para abandonar seu uso, posto que  é impossível comprovar a inexistência de um evento. Isso é importante porque todo o conhecimento que temos estabelecido em ciência foi exaustivamente testado e, por isso, só podemos aceitar uma nova hipótese como verdadeira quando ela passa por testes e se sustenta por conta própria. 

 

Diferente do que possivelmente ocorreu no “estudo” em questão, a pesquisa científica não é feita para sustentar pontos de vista criados previamente, ou seja, não fazemos estudos ou selecionamos resultados que venham a convergir e sustentar nossas crenças prévias. Pelo contrário, construímos conhecimento a partir dos resultados que obtivemos em pesquisa e se, com isso, os novos achados, sendo eles robustos, desconstruirem aquilo que se sabia previamente sobre o evento, não nos apegamos e consideramos o que se sabe até então. Portanto, a construção do conhecimento científico é um processo que por vezes vai requerer a humildade de reconsiderar nossas certezas diante de provas sólidas. 

 

No entanto, isso não se verificou na pesquisa da Prevent, pois traçou um estudo que, aparentemente, desde o início buscou não testar uma hipótese, mas prová-la. Desse modo, podemos sintetizar com o que aponta Carl Sagan em “O mundo assombrado pelos demônios”: quando confundimos as esperanças com os fatos, nos afastamos da ciência e caímos em superstição ou pseudociência.

Imagem 2: Fachada de hospital da Prevent Senior 

Fachada prevent senior.jpg

Fonte: Exame.com

 

Ética em pesquisa

 

Quando tratamos de pesquisa, mais especificamente nos desenhos de Ensaio Clínico Randomizado, temos uma âncora ética que nos dá a justificativa moral de testar medicamentos em pessoas, que é o conceito da equipolência. Tal ideia trata da incerteza verdadeira que temos se um tratamento é eficaz e seguro para a condição que estamos avaliando. Nesse sentido, é justo que eu teste uma intervenção se de fato haja motivo para eu desconfiar que ela seja eficaz e que, portanto, exista a dúvida genuína. Para tal, isso passa não só pelas diferentes fases de um estudo, mas também na gênese da ideia, pois deve haver alguma razoabilidade na hipótese. Será que a probabilidade pré-teste de uma droga antimalárica, à exemplo da cloroquina, para redução de mortalidade de uma doença viral, como o coronavírus, é alta? Faz sentido biológico eu testar isso em diversos estudos do tipo Ensaio Clínico Randomizado (ECR) ou estamos partindo, desde a origem, de uma ideia pouco provável? Devemos pensar também se a probabilidade de benefício para o meu paciente é razoável o suficiente para eu o expor dessa maneira. 

 

Em vista disso, podemos desconfiar que, no contexto da seguradora de saúde, não houve esse cuidado com a razoabilidade da ideia original, mas sua adoção pela forma como se impunha por influência política daquele momento no país, ou interesses terceiros.

 

Pois bem, mas como disse no início, os problemas não estavam apenas na metodologia em si. Nos últimos meses, descobrimos possíveis desvios éticos relevantes que vão de encontro a todos os marcos orientadores da ética em pesquisa clínica, que floresceram nos últimos 60 anos. Muitos deles apontados por ex-médicos da rede e analisados pela CPI da covid.

 

Nesse sentido, foi levantada a prática de por vezes não informar adequadamente os pacientes e familiares sobre as medicações empregadas - leia-se hidroxicloroquina e azitromicina. Além disso, há a ausência de consentimento livre e esclarecido para alguns dos pacientes que participaram. 

 

Não obstante, a amostra usada pelo estudo era de idosos. Idosos esses que naturalmente já são mais vulneráveis e não deveriam estar como grupo predominante em pesquisa, uma vez que sua condição biológica já os deixa mais suscetíveis aos riscos em comparação a faixas etárias mais novas. Assim, reduzimos ainda mais a margem de benefício que esses pacientes poderiam ter com a entrada no estudo. Dados todos os possíveis riscos e ônus presentes, a pesquisa clínica deve selecionar seus participantes de forma justa, de modo que características como idade, etnia, vulnerabilidade social sejam levadas em conta.

 

Mas, diante disso tudo, se você já precisou submeter um projeto de pesquisa ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) de alguma instituição, pode estar se perguntando como que isso foi aprovado. Acontece que não foi! Na verdade, o estudo chega a ser autorizado, mas seis dias depois é suspensa a autorização justamente por verificarem irregularidades. Dito isso, dentre as diversas incoerências existia também diferença entre o número de participantes propostos e os que realmente participaram do projeto, sendo este último muito maior. Ademais, foi observada a ausência de notificação de casos de covid na pesquisa. Posteriormente, em pacientes dos hospitais da rede, foi verificada a alteração de registro de internamento na causa de morte, modificando o CID do paciente para sequelas da covid e não da doença em si. 

 

Por fim, existem indícios de que a pesquisa pediu autorização para o Conep depois de iniciada a coleta de dados, o que é completamente inadequado.

 

Consequências negativas para a imagem da ciência

Vale destacar que esse cenário configura uma exceção à realidade da pesquisa no Brasil, que possui regulação sólida e estrutura legal condizente com todos os marcos de ética em pesquisa estabelecidos internacionalmente. Pesquisadores de carreira séria prezam pelo adequado acompanhamento de seus pacientes e pela ética nos projetos que desenvolvem.

 

Pseudociência e má ciência inevitavelmente se disfarçam para utilizar do prestígio que a ciência de qualidade possui, para que, por mais que não sigam o que o método científico propõe, possam se aproveitar da fama de solidez e confiança das conclusões que ele viabiliza. Por isso o emprego dos termos como “tratamento precoce”, “kit covid”, estudo ou estudos que mimetizam pesquisa clínica, mas são de baixa qualidade. Tudo para tentar transparecer boa ciência, boa medicina, quando, no fim das contas, não se sustentam sozinhos, pois não passam de delírios de negação da realidade. 

 

Enfim, caro leitor, apenas mais um dia na nossa terra em transe.

 

 

Referencias:

BETIM, F.; OLIVEIRA, R.; BENITES, A. Prevent Senior, em busca do macabro milagre da cura pela cloroquina que alimentou Bolsonaro. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2021-09-23/prevent-senior-em-busca-do-macabro-milagre-da-cura-pela-cloroquina-que-alimentou-bolsonaro.html>. Acesso em: 29/10/2021.

 

CORREIA, L. Medicina Baseada em Evidências: “Não há evidência para tudo.” Disponível em: <http://medicinabaseadaemevidencias.blogspot.com/2014/10/nao-ha-evidencia-para-tudo.html#:~:text=Primeiro%2C%20o%20princ%C3%ADpio%20da%20hip%C3%B3tese>. Acesso em: 30/10/2021.

 

FERREIRA PINTO, V. Estudos clínicos de não-inferioridade: fundamentos e controvérsias Non-inferiority clinical trials: concepts and issues. 2010.

 

MEIRELLES, M. Coordenador da Conep vê “fortes indícios” de fraude científica da Prevent Senior. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/saude/coordenador-do-conep-ve-fortes-indicios-de-fraude-cientifica-da-prevent-senior/>. Acesso em: 29/10/2021.

 

PASTERNAK, N.; ORSI, C. Uma aula de como não se deve testar um medicamento. Disponível em: <https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/questao-de-fato/2020/04/18/uma-aula-de-como-nao-se-deve-testar-um-medicamento>. Acesso em: 29/10/2021.

 

SAGAN, C. O mundo assombrado pelos demônios : a ciencia vista como uma vela no escuro. São Paulo (Sp): Companhia De Bolso, 2006.

 

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS. Caso Prevent Senior impulsiona debate sobre ética em pesquisas. Disponível em: <https://ufmg.br/comunicacao/noticias/caso-prevent-senior-pauta-discussao-sobre-etica-em-pesquisas>. Acesso em: 3/11/2021.

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