Como saber medicina (ou não)

Ao escrever este texto estou há menos de 80 dias de me tornar médico pela FMB. Nesta etapa, tendemos a processar as experiências vividas e modelar um perfil de médico que queremos nos tornar, unindo nossas referências éticas e técnicas. Mas ao racionalizar quais habilidades precisamos ter para sermos bons médicos no século XXI, vejo que grande parte dos conceitos extraídos da graduação estão em descompasso com as tecnologias mais quentes no meio científico e da prática clínica. Essa reflexão será substrato para essa breve explanação.

 

Um dia, um dos meus professores cunhou a frase: “Sabe qual a atitude mais ética que um médico pode ter? Saber medicina”. Mas o que seria saber medicina?  Os mais antigos, enquanto digitam com os dedos indicadores a receita do antibiótico, diriam que a clínica é soberana e que o conhecimento semiológico, patológico e farmacológico é inerente a um grande médico. Os mais jovens, digitando mais rápido do que o interno seria capaz de pensar, advogaria sobre a importância de dominar conceitos de MBE, interpretar exames de imagem e dominar as novas ferramentas “point of care”. Embora com habilidades e direcionamento do tempo de capacitação diferentes, ambos poderiam ser igualmente competentes e com gabarito técnico para ter o resultado esperado com seus pacientes. 

 

Então, quais habilidades essenciais de um médico competente em 2022? 

Seria aquele que tem maior taxa de acerto diagnóstico ou melhor relação médico paciente? Seria aquele que à inspeção identifica um sinal semiológico ou o que domina o exame de imagem padrão ouro? 

 

Imaginemos então uma situação hipotética em que você está com seu paciente no consultório e ele te pergunte qual é o risco de que ele desenvolva um evento cardiovascular (RCV) nos próximos 10 anos.

 

Médico 01: “Mesmo considerando seus fatores de risco, não tenho como te informar com precisão, pois cada paciente é diferente. No entanto, de acordo com as evidências disponíveis e minha experiência clínica há um risco significante de que você venha a desenvolver um evento cardiovascular em 10 anos e, portanto, está indicado a profilaxia com estatina.” 

Médico 02: “Considerando Pacientes com fatores de risco semelhantes aos seus, e utilizando a calculadora da American Heart Association (AHA), o senhor tem um RCV de “X%” em 10 anos, portanto, está indicado o início de profilaxia com estatina.”

Médico 03: “Considerando as suas características individuais, e utilizando esse software de “machine learning” (ML), que tem acurácia 3,6% superior a calculadora da AHA, o seu RCV é de “Z%” em 10 anos, e está indicado o início de profilaxia com estatina.”

 

Observando os três cenários hipotéticos, é possível extraímos algumas conclusões: 

1. Se consideramos que as três abordagens foram feitas em 2000, 2010 e 2020 respectivamente, os três médicos tiveram condutas com igual razoabilidade ética e competência, pois argumentaram com base nas melhores ferramentas disponíveis para o momento. 

2. Se considerarmos que todos estão em 2020, mas mudássemos o cenário para envolver pacientes com patologias diferentes, que dispõem de ferramentas e alicerce científico díspares, novamente as três abordagens potencialmente prezariam pela melhor conduta. 

3. Se for a mesma doença, manejada em 2020, observamos que o cenário 3 representaria maior precisão prognóstica e segurança para definir a conduta correta, sendo, portanto, mais “responsável” e ético.

 

A título de fundamentação, esse estudo que comparou ML com o algoritmo da AHA, foi de fato realizado por F. Weng et al., 2017. Eles demonstraram que técnicas de ML (ex: redes neurais) foram superiores para predizer RCV em 10 anos, classificando melhor os pacientes com ou sem indicação de profilaxia com estatinas. A explicação é que os modelos diagnósticos e prognósticos que dispomos utilizam relações lineares entre apenas alguns preditores por vez. Assim, não são capazes de explorar integralmente as relações complexas entre as variáveis para devolver o valor numérico mais acurado possível (mesmo quando desenvolvidos por uma instituição com credibilidade científica, como a AHA).

 

Voltando ao caso, o que o podemos observar é que, embora o conhecimento das patologias seja heterogêneo e as condutas definidas com diferentes qualidades de evidência, em um cenário de aprofundamento do uso de tecnologias de informática, há uma tendência inevitável da superioridade do ML nas tarefas de diagnóstico, terapêutica e prognóstico. E esse movimento é ilustrado se olharmos para o número de publicações no PUBMED sobre “machine learning OR artificial intelligence”.  Entre 2000-2021 houve um salto importante no número de publicações (n=1275 (2000); n=4775 (2010); n=7794 (2015); n=403945 (2021)). O cenário 3 será cada vez mais frequente na nossa prática e a comunidade científica sabe claramente que as máquinas não serão perfeitas. Porém, elas só precisam ser superiores aos humanos, e certamente serão. Não necessariamente isso representa um futuro distópico, afinal o objetivo ético é justamente trazer o melhor cuidado ao nosso paciente. Mas é importante compreender que talvez precisemos redirecionar nossos esforços ao desenvolvimento de outras habilidades e ressignificar constantemente nossos conceitos do que é “saber medicina”. 

 

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Progressão do número de publicações no PUBMED sobre “machine learning OR artificial intelligence.png

#ParaCegoVer: Progressão do número de publicações no PUBMED sobre “machine learning OR artificial intelligence” – acessado em abril 2022

 

E as habilidades tradicionalmente ensinadas serão desprezíveis?

 

Certamente não. Fundamento inicialmente argumentando que a prática médica vai muito além do diagnóstico, prognóstico e tratamento. Ela envolve responsabilidades que as máquinas ainda não são capazes de assumir, além de habilidade para interação entre médico e paciente que ainda são exclusivas dos humanos. E a importância desse “ato místico” de poder se “conectar” tem bom respaldo na literatura, com inúmeras revisões sistemáticas que demonstram o aumento da adesão medicamentosa e melhora de desfechos clínicos a partir de melhor domínio da relação médico paciente.

 

Entretanto, se nos atermos apenas à medicina diagnóstica e prognóstica, podemos ainda assim argumentar que dentre as modalidades de aprendizado de máquina, a que parece ter maior aplicabilidade é a de aprendizado supervisionado”. O que significa que é preciso a inserção manual (por um humano) de dados e delimitação dos desfechos de interesse para construção do algoritmo. 

 

Por exemplo, ao inserirmos dados sociodemográficos da anamnese (entrevista), exame físico e exames laboratoriais sobre uma amostra conhecida de pacientes precisaremos explicitar para o software qual o seu diagnóstico (ex: esquizofrenia, depressão maior). A partir de então, ao apresentarmos novos pacientes, o programa será capaz de classificar (predizer), com base nos modelos que ele desenvolveu, qual o diagnóstico mais provável. Essa modalidade dirigida requer um profissional competente que saiba aplicar seu conhecimento técnico para identificar e inserir corretamente variáveis clínicas, sendo então indiretamente dependente de se “saber medicina”.  

 

Como poderíamos incorporar isso à Formação Médica? 

 

Nos últimos 6 anos fomos expostos a mudanças no currículo da nossa graduação, outra prova de que as competências e habilidades consideradas mais importantes na formação médica se atualizam ao passar do tempo. Porém, como este é um tema ainda em desenvolvimento, se torna um desafio incorporar o treinamento dessas novas “competências” e domínio desse saber informatizado no nosso programa de ensino. 

 

Em paralelo, existe uma tendência nas principais provas de residência médica do Brasil (ex: USP, UNICAMP) em incorporar a capacidade de interpretação de padrões em seus concursos. Percebe-se então, que enquanto cerca de 80% das doenças se resolvem na anamnese e exames físicos, mais de 40% das questões utilizam imagem ou interpretações desses exames.  Essa capacidade de reconhecimento de padrões é justamente o ponto de interseção em que a tecnologia se mostra mais promissora na capacidade de ser complementar a prática médica. Cabe a nós então, no futuro, saber admitir quando a máquina suplanta a nossas limitações, e, assim aproveitar as potencialidades desses softwares visando o maior benefício para os nossos pacientes.

 

O médico para ser ético tem que saber medicina, mas definir o que é “saber medicina” em um cenário de transformação da prática médica é um desafio que teremos que lidar nas próximas décadas. O que é bem claro é que a responsabilidade com o paciente sempre será o leme. Seja qual for a adaptação que devemos fazer, se buscarmos isso, estaremos mais próximos do sucesso.

 

Referências:

Náfrádi L, Nakamoto K, Schulz PJ. Is patient empowerment the key to promote adherence? A systematic review of the relationship between self-efficacy, health locus of control and medication adherence. PLoS One. 2017.]

 

G. S. Handelman, H. K. Kok, R. V. Chandra, A. H. Razavi, M. J. Lee, H. Asadi. eDoctor: machine learning and the future of medicine, Journal of Internal Medicina, 2018.

 

https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/?term=machine+learning+OR+artificial+intelligence&filter=years.2000-2022&timeline=expanded

 

https://www.cvriskcalculator.com

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