Atentados à Universidade Pública e à ciência brasileira
Não sou historiador, sociólogo, antropólogo, economista ou cientista, mas trarei um ponto de vista construído à luz de fatos, evidências e leituras feitas pelo meu eu curioso.
O desenvolvimento social e econômico de um país passa por investimentos prolongados em educação pública, ciência e tecnologia. No Brasil de 2020, no entanto, a ciência e tecnologia são tratadas sob um filtro ideológico e aparecem apenas de maneira protocolar nos palanques políticos, ignorando-se todos os exemplos históricos e as evidências científicas publicadas que sustentam a prioridade dessa agenda para o país.
Inúmeros foram os atentados à Universidade Pública e à ciência brasileiras.
Basta lembrarmos dos cortes orçamentários sob o “criterioso” argumento de “balbúrdia” nas universidades públicas, das tentativas de descredibilização do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), da deterioração de nomes como o de Paulo Freire e Charles Darwin. Mais recentemente se naturalizaram discursos endossando as ideias terraplanistas, movimentos antivacina e anticlima, que culminaram na nomeação de Benedito Guimarães para a CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), defensor da tese pré-científica do criacionismo em detrimento da teoria evolucionista, sob o argumento, um tanto “irônico”, de que há lacunas na teoria darwinista para sustentar suas hipóteses de origem da vida.
Das teorias e discursos infelizes à prática, nos anos passados nos deparamos, ainda, com impactantes cortes nos investimentos em ciência, tecnologia e inovação. Podemos ilustrá-los com a redução no orçamento ministerial projetado de 43 bilhões entre 2007-2010 para 7,4 bilhões em 2019, assim como cortes executados de mais de 11.000 bolsas de pós-graduação e iniciação científica.
Os resultados publicados pela Universidade de Leiden, na Holanda, demonstraram que no período entre 2009 e 2017, o Brasil aumentou 141% o número de artigos dentre os 10% mais citados no mundo e 225% entre os 1% dos artigos mais citados. Ainda, dentre as 23 universidades avaliadas (todas públicas), houve uma redução de aproximadamente 20% na desigualdade da produção científica entre as diferentes regiões do país (aumento da publicações no Nordeste, Centro-oeste e Sul). O fim das políticas que impulsionaram esse “boom” já nos gera consequências a curto prazo, e a longo prazo as perspectivas são preocupantes.
Nesse contexto, em que os vieses ideológicos têm violado as políticas feitas de maneira racional, a universidade é vista como uma ameaça, por construir críticas dissidentes e ser um agente político de resistência. Porém, é inegável que é um instrumento estruturador central para desenvolver a soberania econômica, científica e impulsionar a superação das distorções sociais. Ao precarizar, descaracterizar e desestimular a pesquisa universitária e tratá-la como algo supérfluo e opcional, está se cometendo um erro estratégico. Pode-se extrapolar como sendo algo prioritário e necessário que é manejado como, apenas, um “artigo de luxo”.
Figura 1: Terra
Fonte: ELSETGE
Os movimentos políticos que plantam uma perspectiva liberal-conservadora de redução dos investimentos públicos em pesquisa em prol do domínio do mercado como protagonista de tudo é uma tese inconsistente em si mesma.
Os Estados Unidos, maior espelho da soberania do mercado como vetor de desenvolvimento, têm mais de 60% dos recursos para pesquisa universitária (pública e particular) garantidos pelo Estado, assim como 80% em se tratando de Europa e Canadá e 50% na China, sendo que em todos esses países menos de 10% das pesquisas são financiadas por instituições privadas.
No Brasil, enquanto flutuamos entre a 8ª-9ª economia do mundo, somos o 28º colocado em um ranking global que mede investimentos em ciência, pesquisa e inovação. Isso em um cenário no qual, conforme a UNESCO apenas 1,3% do PIB brasileiro e menos de 0,2% do orçamento da união atualmente são dedicados ao Ministério de Ciências, Tecnologia e Inovação.
Ao passo que o protagonismo estatal no desenvolvimento científico ocorre mesmo nos centros mais poderosos economicamente, uma parcela da população brasileira insiste em se apoiar sobre um inconsciente coletivo de métrica exploratória, conservadora, e ufanista do ponto de vista das riquezas naturais e fadado, portanto, a produção primária. Não poderia o Brasil, então, se desenvolver explorando recursos naturais e importando tecnologia ao invés de investir internamente?
O trabalho científico de Bradshaw, 1988, e o Livro de Grammig 2002, demonstraram o contrário. A importação de “pacotes tecnológicos” de países desenvolvidos para países periféricos demonstrou-se incompatível com as necessidades locais, o que a médio e longo prazo resultaram em dependência financeira, estagnação econômica, além de aprofundamento da desigualdade social local.
O antropólogo e teórico de educação Darcy Ribeiro escreveu o livro “A universidade necessária” em 1969 e que elabora a função social da universidade na produção de “cérebros” críticos, com a construção de uma identidade científica nacional que advogue e produza tecnologia à luz das necessidades internas. Nessa mesma obra, o autor crava o conceito de “modernização reflexa”, correlacionando a precarização e despolitização da universidade como um dos vetores para perda de nossa autonomia enquanto estado.
Isto é tão contemporâneo que o fenômeno da fuga de cérebros, bastante debatido e que vemos com preocupação, pode ser facilmente interpretado como consequência da precariedade e insustentabilidade da produção científica nas universidades, de forma a ser um símbolo/sintoma do aprofundamento da subordinação econômica e cultural que estamos vivendo nesse presente distópico.
Muito embora tenhamos que nos orgulhar do setor primário ilustrado pela EMBRAPA e Petrobras, o brilho dessas instituições está no seu protagonismo científico mundial. Agora, me arrisco a sugerir que os discursos de estímulo às práticas agropecuárias exploratórias (liberação de novos agrotóxicos e desmatamento para pastagem) em detrimento de tecnologias sustentáveis e de maior valor agregado, assim como a venda sistemática de subsidiárias da Petrobrás, que desenvolviam tecnologia petroquímica, refinamento e beneficiamento do petróleo bruto, são movimentos que minam o nosso destaque e aumentam nossa dependência externa.
Fígura 2: Nosso mundo
Fonte: Walpaper Safari
De volta ao nosso mundo:
Nem tudo são lamentações e a mudança começa no nosso mundo. Tivemos nos últimos anos um incremento significante no número de publicações científicas de alta qualidade e ainda abrigamos cientistas de altíssimo calibre no nosso país. Houve progresso no cumprimento da função social da universidade, com dados de 2019 do IBGE e Andifes apresentando que, pela primeira vez, mais da metade dos estudantes matriculados em universidades públicas são negros e mais de 70% são de baixa renda. Há que se constatar que as políticas em curso ameaçam a continuidade dessa evolução.
Ainda temos muito a evoluir. Estudos independentes demonstraram que número de cientistas por habitante se correlaciona a maior desenvolvimento social e econômico, a exemplo de países como Coreia do Sul e Israel que têm 8x mais cientistas por milhão de habitantes do que o Brasil.
Nesse sentido o investimento educacional nessas instituições de graduação e pós-graduação vão além de um preciosismo governamental e não podem estar condicionados a nuances ideológicas. Não se trata de uma política de governo, trata-se de uma forte política de Estado para o desenvolvimento educacional e ataque a desigualdade social.
Aqui (estudantes), entramos na história. Além de agentes políticos, ao voltarmos o olhar para Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (FMB-UFBA), mais especificamente a função das ligas acadêmicas, percebemos que fazendo pesquisa estamos correspondendo a necessidades próprias e da instituição: garantimos com baixo ou nenhum custo a valorização da Faculdade, construímos uma alternativa para a escassez de bolsas de iniciação científica e nos expomos à pesquisa, evoluindo e despertando interesse de possíveis futuros cientistas.
As ligas têm potencial de produzir trabalhos de alta qualidade com recursos próprios, na maior parte das vezes, o que repercute na avaliação e melhor pontuação nos critérios científicos que escalonam/ranqueiam as instituições de ensino. O nome da FMB-UFBA, por exemplo, esteve em dezenas de congressos pelo Brasil, com inúmeros trabalhos publicados e premiações relevantes nacionalmente. Sucesso esse, financiado pelo comprometimento dos estudantes.
Em termos individuais, a pesquisa nas ligas acadêmicas fomenta grande parte dos Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC), que invariavelmente se apoiaram na estrutura institucionalizada da liga para ter maior atenção dos orientadores, maior aprofundamento teórico e maior robustez metodológica. Desse modo, embora de forma não regulamentada, há uma iniciação científica de alta qualidade nas ligas que trabalham com seriedade, de onde certamente surgem futuros cérebros.
Esses “cérebros” demonstram que a ciência e pesquisa na universidade são instrumento de desenvolvimento econômico, político, social. Portanto, não é algo opcional ou desprezível, é uma necessidade pujante.
REFERÊNCIAS:
Grammig, T., 2002. Technical Knowledge and Development: Observing Aid Projects and Processes. Routledge, New York.
Bradshaw, Y., 1988. Reassessing economic dependency and uneven development: the Kenyan experience. American Sociological Review 53, 693–708.
Marcus A Ynalvez, Wesley M Shrum, W. Shrum, volume 20, pp. 13607–13610, _ 2001, Elsevier Ltd.
"Success and Education in South Korea," Comparative Education Review 38, no. 1 (Feb., 1994): 10-35
http://uis.unesco.org/apps/visualisations/research-and-development-spending/
https://www.leidenranking.com/
https://jornal.usp.br/ciencias/nos-paises-desenvolvidos-o-dinheiro-que-financia-a-ciencia-e-publico/
http://www.portaltransparencia.gov.br/orcamento?ano=2020
https://g1.globo.com/educacao/noticia/2020/01/24/novo-presidente-da-capes.ghtml
https://jornal.usp.br/artigos/fuga-de-cerebros-uma-calamidade-para-o-brasil/
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