Rudolf Virchow, erro médico e a morte do príncipe do império alemão: o que tudo isso tem a ver com MBE?

Eis que estava na aula de Patologia sobre degeneração celular e o professor cita o então pai da Patologia moderna. Com uma trajetória cheia de louros, fez descobertas na Medicina, e foi de político a médico renomado, mas que também cometeu um erro médico que custou a vida do então príncipe do império alemão da época.

Quem foi Rudolf Virchow e o que esse episódio icônico tem a ver com erro médico e com a falácia do especialista?

 

Sumário

Quem foi Rudolf Virchow?

Príncipe do Império Alemão e Erro médico

Erro médico, palavra de autoridade e nullius in verba

Conclusão

 

Quem foi Rudolf Virchow?

 

Rudolf Ludwig Karl Virchow nasceu no ano de 1821, em uma cidade atualmente situada na Polônia, sendo considerado um polímata, atuando como médico, patologista, antropólogo, biólogo, historiador, escritor, editor e político. Dentre essas áreas, talvez tenha obtido mais êxito como médico patologista, sendo considerado o pai da patologia moderna.

 

Filho único de pais protestantes e academicamente notável, ingressou aos 14 anos em ginásio para tornar-se pastor protestante, uma grande honra para as famílias na época. Formou-se padre aos 18 anos, mas, devido a não se considerar um bom pregador, decidiu arriscar a vida na Medicina, onde notadamente manteve seu brilhantismo. Ingressou na Academia Militar da Prússia, então situada em Berlim, graduando-se médico em 1843. Como uma escola militar de medicina, a formação na época era essencialmente prática, devido ao objetivo de formar cirurgiões militares para o exército prussiano (SANTOS, 2008).

 

Figura 1: Rudolf Virchow

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Fonte: brittanica.com

#PraCegoVer: Ilustração em preto e branco do busto de Rudolf Virchow. Homem branco, com cabelo curto e barba volumosa, ambos grisalhos. Aparece usando óculos redondos em armação metálica. Pelo corte do busto aparenta estar usando camisa social e terno.

 

Iniciou sua carreira como professor na mesma Universidade que se formou e em 1856 assumiu a cátedra de anatomia patológica da Universidade de Berlim. Virchow esteve envolvido em diversas descobertas e contribuições científicas inovadoras, em especial na área de anatomia celular, sendo sua atuação relacionada à patologia, com uma proposta científica enraizada na anatomia e histologia para aprimoramento de técnicas diagnósticas.

 

Na cátedra de anatomia patológica, destacou-se por um trabalho de investigação e análise, no qual elucidou mecanismos de doenças como trombose e leucemia. Aperfeiçoou a técnica de autópsia que era empregada na época, além de técnicas de investigação forense. Suas contribuições na área médica lhe renderam alguns epônimos em sua homenagem. Teve participação ativa na Guerra Franco-Prussiana, onde liderou o primeiro hospital móvel para atender os soldados, e aperfeiçoou os atendimentos realizados nos hospitais de campanha. Também envolveu-se em atividades sociais, como saneamento básico, construções hospitalares, aperfeiçoamento de técnicas de inspeção de carne e higiene escolar. Por seus esforços nessas áreas, além de patologista, obteve certo destaque na medicina social, antropologia e política (SANTOS, 2008).

 

Príncipe do Império Alemão  e Erro médico

 

Notadamente conhecido na Alemanha da época pelas suas notoriedades profissionais e acadêmicas, comumente era solicitado para análise de amostras e investigação patológica de doenças por membros da alta sociedade, onde sua palavra tinha alto valor. Nesse contexto, podemos citar o então episódio do príncipe do império alemão.

 

No ano de 1887, o então príncipe do império alemão, Frederico, estava cursando com um quadro de rouquidão. Naturalmente, suspeitou-se de uma gripe, mas, com o tempo, vendo que não havia melhora, fez uma análise com o laringologista que constatou um nódulo vermelho na corda vocal do príncipe (BENTO, 1998). Várias tentativas de retirada com bisturi e cauterização do nódulo foram feitas, porém sem sucesso e com piora do quadro de rouquidão. A essa altura, com os conhecimentos já existentes na época, suspeitava-se de um tumor.

 

O quadro tomou grandes proporções, com uma preocupação tamanha sobre o que poderia ser e a gravidade do quadro, tendo vários médicos envolvidos. Foi feita uma cirurgia com dezenas de médicos presentes, retirando parte do tumor. Era preciso investigá-lo. E aí entra o patologista que protagoniza nossa história. Uma parte do tumor foi enviada para o professor Virchow em Berlim, que declarou que não se tratava de um tumor maligno, afirmando a benignidade do tumor. Assim, suspendeu-se a retirada total do tumor.

 

Figura 2: Príncipe Frederico III

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Fonte: wikipedia.org

#PraCegoVer: Ilustração em preto e branco de Frederico III, vestido com uniforme militar. Homem branco, com cabelo preto curto e barba preta bastante volumosa, alcançando a margem superior da clavícula. O uniforme militar apresenta bastante adornos, como insígnias militares do lado esquerdo do uniforme, além de brasões e faixas

 

Alguns meses depois, Frederico III teve uma piora da rouquidão associada a um quadro de falta de ar. Constatou-se um crescimento do nódulo e aumentou a suspeita da malignidade do tumor. Os médicos que acompanhavam o príncipe já não esperavam um bom prognóstico. Frederico III veio a falecer no ano seguinte, ao início dos sintomas, em junho de 1888 (BENTO, 1998).

 

É importante ressaltar que esse episódio não reduz a trajetória de Virchow, uma vez que temos que considerar  os métodos diagnósticos e patológicos empregados na época, bem com a susceptibilidade a erros desses métodos. Mas podemos tomar esse exemplo para compreender termos interessantes sobre Ética Médica e Medicina Baseada em evidências como erro médico, palavra de autoridade e a falácia do especialista.

 

Erro médico, palavra de autoridade e nullius in verba

 

Antes de tudo, o que seria erro médico? De acordo com o Código de Ética Médica, segundo resolução do Conselho Federal de Medicina, erro médico se caracteriza por qualquer dano causado ao paciente no exercício da profissão médica, pela ação ou omissão do profissional, sem a intenção de cometê-lo. Pode ocorrer de três formas principais, resumidamente:

 

  • Imprudência: ação precipitada, na qual assume o risco em determinada conduta ou procedimento
  • Imperícia: há uma inaptidão, falta de qualificação para realizar tal ação
  • Negligência: quando deixa-se de tomar uma ação ou conduta esperada para a situação, sendo descuidado

 

Temos que considerar o contexto específico na época do falecimento do príncipe austríaco, mas esse caso nos faz pensar no grau de importância que se dava à palavra de uma grande referência da área, seja ao tomar uma conduta ou ao assumir que uma proposição é verdadeira. Frequentemente, recorria-se a autoridades em variados assuntos para atribuir validade a um determinado pensamento ou conduta. Não é algo necessariamente inadequado, mas torna-se contraditória quando há uma certa influência ideológica, pessoal ou subjetiva que altera sua correspondência lógica com a verdade.

 

Nesse contexto, podemos citar a falácia do especialista, na qual há um certo apelo à autoridade, sendo a palavra ou reputação de algum profissional referência no assunto exclusivamente utilizada para validar o argumento. Há situações pontuais em que é plausível esse pensamento, mas essa lógica se torna perigosa a partir do momento em que a conclusão se baseia apenas na credibilidade de quem profere a sentença, sem considerar os argumentos ou se há evidências que a sustentem. 

 

Nesse sentido, temos o famoso lema nullius in verba da Royal Society, instituição fundada em Londres para divulgação e promoção do conhecimento científico. Nullius in verba ou, em tradução livre, “nas palavras de ninguém” se refere a ter uma resistência a essa autoridade infundada, sendo necessário verificar essa afirmação através de evidências experimentais.

 

Figura 3: Medalha com brasão da Royal Society

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Fonte: royalsociety.org

#PraCegoVer: Medalha de prata estampada com o brasão da Royal Society, com o lema nullius in verba. O brasão da Royal Society é composto por um conjunto de elementos; no centro, apoiado no chão com grama, temos o brasão de Armas Reais da Inglaterra (três leões idênticos - um acima do outro, em posição de ataque, com garra direita empunhada -  no canto superior esquerdo do escudo). Temos dois cachorros ao lado do escudo - de cada lado do escudo temos um cachorro com as patas apoiadas sobre o escudo e língua para fora. No lugar da coleira, os cachorros portam coroas. Acima do escudo e apoiado sobre este, temos um elmo medieval, por onde saem plumas que circundam os cachorros lateralmente. Acima do elmo está apoiada uma coroa e pousada na coroa, está uma águia, segurando na sua pata direita um escudo com o brasão das Armas Reais da Inglaterra. Na parte superior da medalha, limítrofe à margem da medalha, temos disposta de forma circular a escritura “THE ROYAL SOCIETY” e na margem inferior, disposto de forma semelhante, temos o lema da instituição “NULLIUS IN VERBA”

 

Conclusão

 

O episódio de Virchow e do príncipe do império alemão da época apenas foi um ilustrativo da responsabilidade que o profissional médico assume ao exercer a profissão, bem como da importância de estar atento a fatores que podem aumentar a probabilidade de erro. Ainda mais por erros médicos que poderiam ser evitados.

 

Em vista disso, a Medicina Baseada em Evidências - a famigerada MBE - exerce um papel fundamental no intuito de respaldar a prática profissional, a ponto desta tornar-se indissociada da MBE. Ao se utilizar de forma criteriosa da melhor evidência disponível, busca-se tomar a decisão mais adequada no cuidado individual daquele paciente, levando em conta suas preferências nesse processo. Por conta disso essa prática é fundamental para evitar viés de autoridade e enganar-se apenas pela experiência pregressa, com altas chances de subestimar seus danos ao paciente.

 

Referências:

SANTOS, Marco Steinert. Virchow: medicina, ciência e sociedade no seu tempo. 1ª Edição. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2008. Disponível em: https://ucdigitalis.uc.pt/pombalina/item/52854Acesso em: 06 set. 2022.

BENTO, Ricardo Ferreira. Onde a otorrinolaringologia poderia ter influenciado nos destinos do mundo. International Archives of Otorhinolaryngology, v. 2, n. 2, Abr-jun 1998. Disponível em: http://www.arquivosdeorl.org.br/conteudo/acervo_port.asp?id=53. Acesso em: 06 set. 2022.

Código de ética médica: resolução CFM nº 1.931, de 17 de setembro de 2009 (versão de bolso) / Conselho Federal de Medicina – Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2010.

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